Continuação do post anterior.
No post anterior, vimos que Schuler se limita a um estudo periférico do Relatório do Credo de 2013 para justificar sua ideologia. Usa o conceito de Dias de Aprendizagem, uma construção arriscada para orientar política pública, como alertam os próprios autores do relatório.
Se agora tomamos o relatório do CREDO, em seu conjunto, e a revisão feita pelo NEPC, verifica-se que ele não tem a potência que Schuler sugere. Para o NEPC:
“Os pesquisadores da CREDO também não justificam suficientemente sua estimativa de crescimento, que eles expressam usando problemático conceito de “dias de aprendizagem”. Além disso, eles usam modelos de regressão que não conseguem abordar a independência das observações e a ausência de erro de medição – duas premissas fundamentais exigidas em tais análises.
Essas preocupações “técnicas” poderiam facilmente implicar diferenças nos resultados do estudo que são substancialmente maiores do que os próprios resultados destacados atribuídos às diferenças entre escolas charter e escolas públicas tradicionais.
Mesmo que as preocupações com os métodos analíticos do estudo fossem deixadas de lado, Maul e McClelland ressaltam que o próprio estudo mostra apenas um pequeno impacto real por parte das escolas charter: “menos de um centésimo de um por cento da variação no desempenho do teste é explicável pela matrícula da escola charter “, eles escrevem. Especificamente, os estudantes em escolas charter foram estimados com aproximadamente 0,01 desvios-padrão nos testes de leitura e 0,005 desvios padrão mais baixos em testes de matemática do que seus pares nas escolas públicas tradicionais.
“Com um tamanho de amostra muito grande, quase qualquer efeito será estatisticamente significativo”, pensam os revisores, “mas, em termos práticos, esses efeitos são tão pequenos que devem ser considerados, sem hipérbole, triviais”.
No conjunto do relatório do CREDO de 2013 a alegada vantagem das escolas charters não tem o impacto que Schuler pretende dar pinçando um estudo periférico relativo à permanência de estudantes em escolas charters por quatro anos. Usa-se o dado como justificativa para pontificar:
“Estamos construindo no Brasil, por causa do corporativismo, um modelo que opõe escolas “de pobres” e escolas “de ricos”. É preciso quebrar isso.” “A corporação com seus “direitos” e os mais ricos à salvo em boas escolas particulares. Os mais pobres, como reza a tradição, em silêncio.”
“Penso que é preciso mudar. O país precisa experimentar novas formas de gestão da educação pública, do ensino básico ao ensino superior, sem preconceitos. No plano global, há duas grandes linhas de inovação: os sistemas de voucher, em que o governo oferece uma bolsa e dá direito de escolha às famílias, em vez de gerenciar escolas; e o modelo das escolas charter, em que o governo assina contratos de gestão com instituições especializadas, de direito privado e sem fins lucrativos. Em ambos os casos, o governo passa da condição de gestor direto para regulador do sistema.”
Até mesmo o Chile, campeão em segregação escolar, segundo ele já resolveu o problema em 2008:
“Em 2008, o sistema foi reformado. Aumentou-se o valor da bolsa oferecida aos estudantes de famílias com menor renda e cresceu o monitoramento do governo sobre a qualidade do ensino. As escolas foram classificadas em três graus crescentes de autonomia, com base nos resultados alcançados: escolas em recuperação, emergentes e autônomas. Nos cinco anos que se seguiram à reforma, caiu em um terço a diferença de resultados obtidos pelos estudantes de maior renda e por aqueles com maior vulnerabilidade.”
Leia mais aqui.
Schuler não cita fontes. Apenas afirma. Não mostra dados que respaldem suas propostas de políticas públicas e quando nos permite vislumbrar de que dados está falando, como os do CREDO, eles não dão conta de respaldar sua política.
No início de 2017, o New York Times abordou a questão dos vouchers dizendo:
Mas quando a “escolha da escola” está pronta para ir para o cenário nacional, uma onda de novas pesquisas surgiu sugerindo que os vouchers para escolas privadas podem prejudicar os alunos. Os resultados são surpreendentes – o pior da história do campo, dizem os pesquisadores.”
Sobre a situação chilena, um artigo de Alfredo Gaete and Stephanie Jones (2015) mostra como a questão é mais complexa do que expõe Schuler.
Mas para Schuler:
“É assustador o destino de um país feito de “escolas para os mais pobres” versus “escolas para os mais ricos”. É exatamente o que estamos construindo no Brasil. A mudança desse cenário não é nada simples. Esbarra na resistência corporativa e no interesse meramente retórico que boa parte de nosso progressismo acadêmico tem pela vida real dos menos favorecidos. E, por fim, tropeça na inércia do sistema político. É sempre mais fácil abrir concurso público e atender à gritaria de alguma corporação do que inovar e buscar alternativas mais complicadas.”
Com chavões anti-estado e anti-serviço público Schuler divulga sua ideologia.
Veja outros relatórios que podem ser consultados para verificar a fragilidade destas políticas:
CREDO sobre as charters em Ohio 2014
Center for Public Education 2015
Brookings Institution sobre os efeitos negativos dos vouchers 2016
Education Research Alliance sobre vouchers em Louisiana 2016
Fordham Institute sobre Ohio 2016
Livro de Frank Adamson: GLOBAL EDUCATION REFORM 2016
Matéria sobre a apropriação dos vouchers por escolas religiosas 2017
Livro de Mercedes Schneider sobre SCHOOL CHOICE 2017
Em outro artigo, ele afirma que o professor é o fator que mais influencia a aprendizagem do aluno. Sem citar fontes novamente, diz:
“A família, a vizinhança e o esforço pessoal contam no resultado de cada aluno. Mas pesquisa após pesquisa mostra que um fator importa muito mais que os outros: o professor”.
“Pode parecer óbvia, mas a ligação entre a qualidade do professor e o que se aprende em sala de aula só foi estudada e comprovada nos últimos anos. As pesquisas mais recentes mostram que não há fator mais importante para o sucesso do aluno na escola e na vida adulta. É mais decisivo que o tamanho das redes de ensino, em que região do mundo estão, as diferenças socioeconômicas entre os estudantes, os gastos com a educação de cada país, se a escola tem ou não computador, se a família ajuda na lição de casa.”
Já é conhecida dos que realmente estudam educação a grande influência do nível socioeconômico nos resultados acadêmicos dos estudantes. Uma síntese deste tipo de pesquisa foi feita por Matthew Di Carlo:
“Mas no panorama geral, cerca de 60 por cento dos resultados do desempenho é explicado pelo aluno e as características da família (a maioria é imperceptível, mas provavelmente se refere ao rendimento/pobreza). Fatores de escolaridade observáveis e não observáveis explicam cerca de 20 por cento, a maior parte deste (10-15 por cento) se deve a efeitos de professores. O resto da variação (cerca de 20 por cento) é inexplicável (erro). Em outras palavras, embora as estimativas precisas variem, a preponderância da evidência mostra que as diferenças de realização entre os alunos são predominantemente atribuíveis a fatores externos das escolas e salas de aula (ver Hanushek et al. 1998; Rockoff 2003; Goldhaber et al. 1999; Rowan et al. 2002; Nye et al. 2004).
Agora, para ficar claro: isso não significa que os professores não são realmente importantes, nem que o aumento da qualidade do professor só pode gerar melhorias pequenas.”
No Brasil também temos o estudo de Travitzki. Reconhece-se, sim, a importância do professor, mas ele está longe de ser o fator mais influente no desempenho do aluno e muito menos está acima, como propõe incorretamente Schuler, dos fatores extra-escolares. Para ser preciso, há que se dizer que o professor é o fator mais influente dentre os fatores intra-escolares. Mas isso, não anula os 60% de influência dos fatores extra-escolares.
No entanto, os reformadores precisam passar esta ideia para em seguida responsabilizar o professor pelo fracasso das crianças na escola e ocultar as repercussões da miséria infantil que atinge as crianças de baixa renda – miséria que não é criada pela escola, mas sim pela estrutura social que os reformadores defendem.
O discurso de que as crianças pobres têm direito à escola privada é, como os dados demonstram, apenas uma cortina de fumaça lançada para ocultar os processos de ressegregação da composição escolar motivada pelas novas exigências de um mundo de trabalho, por um lado, mais dependente de instrução do trabalhador e, por outro, mais precarizado nas condições de trabalho – condições garantidoras da continuidade dos processos de acumulação de riqueza que se quer impor agora à sociedade.
A privatização da educação caminha com esta dobradinha privatizante: vouchers associados à proliferação de escolas charters (escolas públicas administradas por contratos privados) que operam junto ao mercado já existente das escolas privadas – de acordo com a estratificação social dos postulantes.
A lógica é a seguinte: criam-se escolas charters que vão recebendo dinheiro via vouchers drenando recursos públicos e alunos da escola pública. Enfraquecem o sistema público de educação que, precarizado, se desgasta cada vez mais e vai sendo substituído paulatinamente pelas escolas privadas que operam no livre mercado. Esta redefinição na educação, ressegrega também a própria população escolar.