Postado originalmente na Uol em 15/07/2011
Quando retornei ao Brasil após auto-exílio no Chile, em 1974, por força das circunstâncias tive que ganhar a vida no campo da administração de recursos humanos. Durante seis anos, tive contato com inúmeras empresas multinacionais que estavam, então, reestruturando sua ação neste campo (e em outros) em função da mudança do paradigma da produção.
Vinham do modelo fordista e, este, não dava conta das novas exigências. Emergia o modelo Toiotista com profundas alterações na concepção de produção e na forma de organizar a força de trabalho.
Aprendi algumas coisas com esta experiência. A primeira delas foi que as grandes corporações preferiam construir fábricas novas ao invés de investir no remodelamento das existentes. Às vezes, vendiam a antiga e ao lado construíam a nova. Que significava isso? Uma interação muito forte entre arquitetura e a concepção produtiva. De fato, a nova concepção – baseada em ilhas de produção e não mais em linha de produção – não cabia na forma antiga. Tentar adequá-la seria caro demais e pouco eficiente.
O segundo aspecto da aprendizagem – e este é bem situado historicamente, pois perdi contato com a área: dinheiro, não é tudo no processo de motivação. Leio isso até hoje em alguns escritos de estudiosos dos incentivos da área empresarial. Os empresários estavam muito mais interessados em pessoas “intrinsecamente motivadas” do que “extrinsecamente motivadas”. Ou seja, não queriam pessoas unicamente movidas a dinheiro. Diziam, com razão, que motivações extrínsecas são mais efêmeras do que motivações intrínsecas. Mais ainda, que a motivação extrínseca tem por suposto a existência de uma motivação intrínseca. Não se trata de que a motivação extrínseca não tenha efeito, a questão é que não é duradouro ou gera contra-controle cujo custo de gerenciamento é alto.
Na época ainda se investia em recursos humanos com a perspectiva de reter o funcionário na empresa. A partir dos anos 80 esta relação rompeu-se. A empresa admite e demite pessoas em função do fluxo de vendas. Não há mais interesse em manter o funcionário, em geral, por muito tempo. A precarização do trabalho intensificou-se. É a flexibilização da produção para garantir não imobilizar dinheiro em estoque com mercadorias paradas – produz-se o que já foi vendido.
Saído de um treinamento pesado em minha graduação e pós-graduação sobre técnicas de controle do comportamento humano (na graduação fiz a célebre disciplina de laboratório animal baseada no livro de Keller and Schoenfeld, com direito a experimento em laboratório com ratos e tudo o mais; e na pós fiz psicologia experimental no famoso B10 do Instituto de Psicologia da USP, com a grande Carolina Bori, ex-presidente da SBPC – no tempo em que esta entidade era notada) estes resultados logo fizeram sentido. Alí “instalávamos” ou “eliminávamos” comportamentos em ratos e logo a questão da “manutenção” do que era instalado ou eliminado aparecia. O famoso livro “Schedules of Reinforcement” – esquemas de reforçamento – era o ápice do conhecimento à época. Tudo isso era regado a B. F. Skinner e seus livros “Ciência e Comportamento Humano” e “Tecnologia do Ensino”. Nos Estados Unidos, T. Gilbert montava uma das primeiras empresas de “engenharia comportamental”. A despeito das discordâncias que foram se consolidando, aprendi muito sobre ciência e metodologia.
A leitura do livro de Skinner “Ciência e Comportamento Humano” continha um capítulo sobre “Controle do Comportamento Humano”. Todo reformador empresarial da educação deveria ler este capítulo. Alí – estou citando de cabeça – encontrará um conceito chamado “Contra-Controle”.
A tese skinneriana é mais ou menos a seguinte: todo controle gera um contra-controle. Planejar o controle, implica em levar em conta o contra-controle. É um jogo de gato e rato ou, mais elegantemente – de tática e estratégia. Mas, note bem, há um custo para o contra-controle e que não é apenas financeiro, gera ansiedade, raiva, sabotagem, fraude etc.
Como behaviorista à época e praticante de todas estas teses, as conheci por dentro. E quanto mais as conheci, mas se concretizou a decisão de abandoná-las em 1984. É muito curioso reencontrar estas teses após mais de 20 anos que as deixei, no cenário educacional presente.
Por outras linhas de raciocínio, D. Campbell, o famoso autor de “Delineamentos Experimentais e Quase-Experimentais em Educação” chegaria a conclusão parecida:
“Quanto mais um indicador social quantitativo é utilizado para fins sociais de tomada de decisão, mais sujeito ele estará à pressão de corrupção e mais apto ele estará a distorcer e corromper os processos sociais que se pretende monitorar”.
Por que estou dizendo tudo isso? Os reformadores empresariais acham, na trilha do behaviorismo skinneriano, que os incentivos podem ser planejados e que os problemas de contra-controle são questões técnicas de ajuste que a pesquisa e a prática resolverão.
Penso que a prática demonstrará, como vem demonstrando, que estão equivocados. Skinner chegou a isso guiado por uma concepção positivista sobre o ser humano e as leis que o regem. Basta ler o seu livro “Comportamento Verbal”. Os reformadores empresariais da educação acham que é uma questão de “manejar adequadamente os incentivos”. Essa tese supõe que só os reformadores são inteligentes e os professores são dóceis corpos a serem moldados por suas “contingências de reforçamento”, sem pensar.
Tome o caso da utilização de bônus na rede pública estadual de São Paulo: primeiro deram bônus para o professor individualmente. Com a crítica à prática da individualização da responsabilidade de uma atividade complexa como a do ensino, centrada no professor, passaram a dar bônus para a equipe. Mas aí precisava controlar o fato de que as escolas poderiam investir nos melhores alunos para aumentar suas notas e não nos alunos que mais precisavam aprender, abaixo da média. O esforço era menor lidando com quem já sabia. Então veio à luz o Idesp que exige que a escola tenha crescido no desempenho dos alunos que estão abaixo da média. Resultado: o montante do valor de bônus distribuído em 2010 é a metade do que foi distribuído em 2009. Teria o magistério perdido o interesse no bônus, ou teria o bônus ficado inacessível? Ou ambas?
Em outros países a tragédia não foi diferente. Nova York dava bônus baseado no desempenho do professor em um ano de atividade escolar, isso mostrou que não havia estabilidade nos modelos de análise que calculavam os bônus. Passaram para três anos a base de dados – e continua não havendo estabilidade nos modelos. Ao que sei, neste ano estão dando bônus iguais para todos os professores e não mais diferenciados por desempenho. É isso que chamo de gato e rato. E não tem fim. Em Atlanta, como divulguei neste blog, 178 professores e diretores fraudaram (metade confessou) os testes do Estado para ficarem bem na cena. A Secretária da Educação recebeu 230 mil dólares em bônus em 2010. A investigação que seguiu mostrou a existência de uma “conspiração do silêncio” nas escolas a favor das fraudes e a punição daqueles que se rebelavam contra tais fraudes, tudo com aval da Secretaria.
Eis a questão. Isso nos leva ao fato com o qual comecei: a própria arquitetura física e social da escola. Nossa escola foi concebida para excluir alunos e não para ensinar a todos. Isso não é uma invenção do professor ou do diretor, é uma necessidade de nossa organização social que fixou esta função social para a escola: excluir ao longo da formação. Superpor a esta estrutura a pressão de bonificações, gera contra-controle pesado. Elas mexem com a vida das pessoas, e estas contra-controlam para sobreviver.
Os reformadores empresariais querem que esta instituição, de repente, a partir de bônus para seus profissionais e apostilas, passe a ensinar e incluir a todos. É a utopia liberal que, por um lado, não quer perder a boquinha do lucro extraído com a geração de pobreza na sociedade, mas por outro, fica com remorso (falo dos mais honestos) com este fato e quer que as escolas corrijam esta distorção internamente, pelo menos na falaciosa tese da “oportunidade para todos” o que não significa garantia de “resultados para todos”.
Os liberais nunca se deram bem com o fato das pessoas terem direito a resultados iguais na educação básica. Eles preferem dizer que devem ter oportunidades iguais. Isso pode valer para a Universidade, onde as aptidões falam mais forte, mas na educação básica, não. É direito a ter resultados iguais (mesmo que em áreas diferentes de atuação) e não apenas oportunidades iguais. E, mais, tais oportunidades não podem segregar determinadas classes sociais em determinadas profissões.
De fato, nós que criticamos o liberais, somos muito mais exigentes com a escola do que eles -apesar deles quererem aparecer como os paladinos da defesa dos direitos dos pobres à aprendizagem. Como mostram os estudos de valor agregado, as crianças já chegam desiguais à escola. Responsabilizar a escola por ser a única redentora desta desigualdade criada pela sociedade do lucro, é não enfrentar o problema de frente.
Como se pode ver, os liberais (honestos) também sofrem.