A proposta Haddad – I

Em duas postagens analisaremos a proposta do Governo Haddad para o município de São Paulo. Esta primeira fala das virtudes. A segunda dos problemas.

A proposta Haddad: virtudes

São muitos os aspectos que podem ser considerados na análise de uma proposta ampla como a feita pela Secretaria de Educação da Rede Municipal de São Paulo. Selecionei alguns com os quais tenho mais familiaridade.

Em primeiro lugar é importante assinalar que a proposta procura resgatar a conexão com princípios e conceitos importantes produzidos de longa data no âmbito dos educadores profissionais, entre eles: a discussão e a ampliação progressiva da jornada dos alunos na perspectiva da Educação Integral em tempo integral; a adoção do conceito de qualidade social da educação, tendo por base a formulação do Conselho Nacional de Educação em seu Artigo 9º. da Resolução número 4 de 2010; o envolvimento das famílias no processo educativo que também é um princípio que orienta a reestruturação proposta; o princípio da autonomia das escolas na formulação de seus projetos pedagógicos, disposto na Resolução CNE/CEB número 4 de 2010 e a gestão participativa e democrática da Educação Municipal.

Em segundo lugar, só o fato de existir uma proposta articulada e pública do que o governo municipal da capital paulista pretende fazer já é louvável. Isso não é tão frequente. No Brasil, os políticos vão para os cargos e se contentam em repetir os discursos que fizeram durante a campanha, sem detalhar como eles terão concretude durante sua gestão. Hoje temos uma proposta para discutir e para cobrar. Isso não é pouco.

               Em terceiro lugar, os problemas que a proposta procura encaminhar não são invenções ou suposições. Eles são reais. Em especial em relação à progressão continuada e suas interpretações, eles existem igualmente na rede estadual de ensino de SP e lá eles estão procurando lidar com estes mesmos limites há décadas. Portanto, temos duas redes de ensino que apresentam problemas semelhantes ao usar a mesma forma de organização do trabalho pedagógico: a progressão continuada.

               Esta é a herança que o governo Haddad recebe. No passado poder-se-ia ter seguido por outros caminhos, por exemplo, a adoção dos ciclos de formação e não a progressão continuada (e sua irmã gêmea, a aprovação automática). A progressão continuada apareceu para “abrir a porta de saída” da escola e desafogar as redes na década de 90. A crítica a este sistema está feita na academia há muito tempo. Sua implantação substituiu a reprovação explicita pela reprovação branda, ou seja, imperceptível, que se desenvolve em trilhas de progressão que não conduzem à aprendizagem – uma eliminação adiada da criança que se concretiza ao final do ciclo. Ele não tem nenhuma fundamentação nos estudos do desenvolvimento da criança e do adolescente. Foi pensado apenas para juntar as séries e retirar a reprovação de final de ano. Não propõe nenhuma mudança nos tempos e espaços da escola.

               Os ciclos de formação são mais estruturados teórica e praticamente, pois implicam em articular a escola aos tempos da vida – aproximadamente 3 anos da infância, 3 anos da pré-adolescência, e 3 anos da adolescência. Mas a tônica não é a estrutura e sim a reorganização dos tempos e espaços da escola. Penso que, pelo menos em estrutura, a mudança proposta pela Secretaria aproxima-se mais dos ciclos de formação do que da progressão continuada. Eu teria avançado em direção aos ciclos de formação e não para uma recuperação da noção de progressão continuada. Não acho que a progressão continuada seja um sistema defensável. Fico surpreendido com o grau de mobilização em torno de sua defesa, porque ele apenas transforma a reprovação formal em reprovação informal, que ocorre, para muitos, por decurso de prazo. Mas a Secretaria preferiu investir em uma distinção entre progressão continuada e aprovação automática, recuperando a primeira pela negação da segunda, e preservando uma unidade com o que já estava sendo feito. Mas a nova estrutura proposta: Ciclo de alfabetização, Ciclo intermediário e Ciclo autoral, está estruturalmente mais em sintonia com os tempos de desenvolvimento das crianças: infância, pré-adolescência e adolescência. Talvez no futuro se possa dar um salto na direção dos ciclos de formação.

               Em quarto lugar, é neste contexto que temos de analisar com cautela a questão da dependência, reprovação, boletins e notas ao invés de conceitos. A primeira reação é sempre contra tais medidas por que sabemos que em especial a reprovação não conduz a mais aprendizagem. Mas não existe só este lado da questão. A questão é como fazer a progressão continuada, que sabemos cria trilhas que acobertam a reprovação, ser de fato um sistema que ensina a todos e a cada um. A opção foi por apertar os sistemas de avaliação combinada por acompanhamento. Ou seja, tentar tornar a promessa da progressão continuada uma realidade.

               O conceito de avaliação adotado – diagnóstica e formativa – está coerente. As ações consideradas mais “duras” (reprovação, nota, etc.) têm que ser vistas dentro desta concepção maior. A proposta é ter um sistema que evite chegar até a reprovação, mas que assinala para os pais e para as crianças que ela pode ocorrer. É conhecida a queixa dos professores que operam em sistemas de progressão continuada: “não tenho como exigir que o aluno estude, pois ele sabe que vai passar de qualquer forma”. Isso não é uma invenção, é uma realidade.

               Neste sentido, e só neste, é bem vinda a recuperação de um pouco mais de autoridade do professor sobre as exigências que faz aos estudantes.

               É importante ressaltar, finalmente, que a concepção de educação infantil está corretamente formulada em minha apreciação, apesar de não ser especialista nesta área. Como está formulada, interpreto que não é objetivo da Secretaria antecipar a escolarização da educação infantil como tem sido proposto por muitos.

Continua em próxima postagem.

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About Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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8 Responses to A proposta Haddad – I

  1. Avatar de keli keli disse:

    De fato,sou educadora da rede municipal e não posso me calar diante de tantas mudanças, Reprovação, é minha primeira dúvida, na minha opinião é um ponto muito sério que dá poder ao professor, e acredite tem professor assim, que reprovará o aluno por simplesmente não ter uma letra cursiva(de mão), bonita, ou pior, poque ele conversou a aula toda..Há péssimos profissionais na educação, assim como há excelentes, como em toda profissão.E este é o grande nó da educação a qualidade dos cursos de licenciatura, há cursos de pedagogia com 3 dias de aula presenciais…a 100 reais por mês, e há quem procura por essa área, simplesmente porque não tem matemática, ou porque é fácil.Deve haver um rigorosidade na formação do professor, porque não um conselho, como existe a OAB.ou o CRM., para selecionar os profissionais, Outro nó da educação é a estrutura de trabalho…Um professor para ganhar R$4000,00,tem que dobrar em duas, ou mais escolas. E nem é para um salario digno, pois há profissões com a mesma exigência de formação que ganham isso inicialmente.e com 3 anos de trabalho simplesmente dobram seus rendimentos. Sem contar no desgaste físico e mental, porque, falta tempo para um planejamento de aula, com mais estudo, mais criatividade, escuto muitas vezes de meus amigos, “queria muito fazer um jogo que vi , mas e tempo?”Crianças??..lindas, adoráveis, amo, mas não há amor que aguente 10 horas de aula, com todas as emoções e aprendizagens que são inerentes à faixa etária, barulho, brigas, nada de errado com as crianças, mas esquecemos que além dos conteúdos historicamente construídos, há o currículo oculto, há o aprender a conviver e somos nós , professores, os orientadores deste processo também. Diante disso tudo, o que seria ideal?Um modelo adotado por algumas escolas particulares, Um bom salario, para o professor em dedicação exclusiva, Oito horas de trabalho diária, uma parte ministrando aula, e a outra preparando-as, em formação constante com a prática dentro da escola. O colégio Santo Américo,por exemplo, paga a seus professores um salario médio de 8.000,00 para que ele entre as 8 da manhã e saia as cinco da tarde, nesse molde, um tempo com os alunos, e a outra parte para planejamento das aulas, orientadas por seus respectivos coordenadores. Enquanto professora da rede pública, já ouvi deboche de colegas da rede particular em relação ao salário do professor da rede pública.Isso de fato desmotiva qualquer profissional. Tenho dois turnos , e confesso que as 4 da tarde, com minha segunda turma, minha voz, começa a sumir, As vezes para dar conta do preparo das aulas fico em casa horas da noite,o que acaba ocupando um espaço grande do meu momento de descanso.e também porque a rede municipal é mal administrada em relação a verba e falta tempo e material para que o professor planeje suas aulas. Sulfite, algo básico, eu compro para trabalhar, impressão de um texto, faço na minha casa com gasto meu, porque na escola não tem impressora nem mesmo a recarga dos cartuchos, para uso dos professores, e a legislação da verba que chega a escola impede de comprar , alegando que SME abastece, Até abastece, em quantidade que não comporta a escola toda e quase ao final do ano letivo…perto das eleições por exemplo.
    Quando me formei, escolhi trabalhar na rede pública, acredito muito nela, acho que não há espaço de formação docente e discente melhor que a rede pública, Mas a política pública e o descaso com e escola e com os profissionais que nela habitam desmotivam qualquer profissional, principalmente essas mudanças com trocas de governo, Agora a gestão nova joga fora praticamente todo o material e todo trabalho construído na gestão anterior, Não se faz uma avaliação do que está dando certo e o que não esta, simplesmente não serve mais, por questões politicas! E deixo registrado que: mesmo com toda a ineficiência nós apontadas pelas mídias e sistema politico , ainda assim , somos nós, educadores, os únicos que de fato pensamos em qualidade da educação e nas crianças,

    • Avatar de Cristina Cristina disse:

      keli, assim como você sou educadora da rede municipal,de S.P Concordo muito com você principalmente por que sei que não vai ser a reprovação que irá fazer o aluno aprender, o sistema continuará o mesmo e vou além estamos organizados em ciclos , mas as escolas trabalham em série. Dizem que a culpa é do construtivismo e nos 15 anos nunca vi ninguém trabalhar neste perspectiva uma série de erros que nesta proposta nem passa perto de tentar entender. Falta um longo caminho,contudo eu ainda acredito e muito. Enquanto isso faço a minha parte na sala sozinha ou com algumas companheiras que acreditam como eu que educação é um poder que nossos alunos precisam.

      • Avatar de keli keli disse:

        Cristina, penso como você, culpam a concepção construtivista, mas nem a conhecem direito e trabalho assim também, fecho minha porta e faço pelas crianças…do jeito que aprendi a fazer, diferente de como eu aprendi quando criança….mas gosto de ver o brilho nos olhos deles diante de uma nova descoberta..Também trabalho só…ou com poucas colegas com os mesmos sonhos e a mesma concepção de ensino aprendizagem que a minha. Quem sabe um dia??!!!

  2. Avatar de Liz Rabello Liz Rabello disse:

    Keli e Cristina… Quando um educador defende uma proposta baseando seus argumentos em “suposições”… E nestas suposições engendra críticas a companheiros de batalhas… Eu me pergunto: Qual o conceito de ética que vocês educadoras têm?

    • Avatar de keli keli disse:

      Querida Liz minhas palavras não são baseadas em suposições, e acredito que da Cristina também não, mesmo porque concordamos nas opiniões e não o contrário..E são opinões pautadas em anos estudo didático, anos de estudos em politicas educacionais e o melhor estudo…anos em sala de aula…dentro dessa politica educacional de vários governos…

    • Avatar de Cristina Cristina disse:

      Liz, como a Keli disse não são suposições, estamos na sala no dia a dia, fazemos uma prática pautada numa concepção de educação, falo agora por mim, estudo e muito educação Para ter uma vaga ideia atualmente estou apenas fazendo uma formação anual oferecida pela rede municipal ( mesmo que seja pra me contrapor em muito aspectos que considero já termos avançado ), um curso de extensão universitária pela USP e participo de um grupo de estudo uma vez por mês com algumas professoras que compartilham da necessidade de melhorar a educação, discutimos nossas práticas, além de videos e tudo mais. Ah esqueci como optei por uma jornada de trabalho que prevê horário coletivo de estudo na prefeitura, entro 2 aulas mais cedo pára discutir com os colegas juntamente com o coordenador. Todas essas formações são fora do meu horário de trabalho a noite e aos sábados, algumas como no caso da USP pagas por mim. O último curso que fiz foi pela UNESP sexta a noite e sábado o dia todo, com a Prof Gloria da Universidade de Havana para aprofundar meus conhecimentos na perspectiva Sócio Cultural que acredito no meu caso atender melhor as demandas dos meus alunos. Faço minha prática não baseada em achismo, construí principalmente por minhas experiências anteriores ao magistério, sou o que denomino sobrevivente de uma escola tradicional em que , desconsiderada por ser filha de nordestinos analfabetos, tive professores que diziam que eu não seria capaz de aprender justamente por que eu não entendia por que ” o boi baba ” e o que eu teria com isso. Enfim poderia dizer uma série de motivos por que não acredito que a essa proposta possa melhorar a educação , mas a principal seria os educadores não foram ouvidos, e além disso questões cruciais não foram levantadas o que faremos enquanto rede com essas crianças quando chegarem até o 3º ano sem aprender, ainda o que será feito desde o seu ingresso na escola? Por mais que eu tente , por mais que algumas crianças avancem eu ainda me pergunto se não poderia ter feito mais. Não estou preocupada com índices pois tenho vidas dentro da sala e educação pra mim acima de tudo é processo e não produto. nem de longe sou a professora que gostaria de ser mas certamente faço o possível para chegar perto da ideia que as crianças são sujeitos e não objetos do seu processo educativo. Alguns autores que li e que tenho como meus mentores além de minha ex coordenadora pedagógica Ana Maria Gentil, talvez ilustrem mais quem sou . Vitor Paro busco muito chegar próximo da educação como exercício do poder defendida por ele e Paulo Freire. Em se tratando de alfabetização que pra mim não é técnica mas uma construção muito peculiar adoro Regina Leite Garcia, Sergio Antonio, Silvia Colello e além dos clássicos como Ferreiro e Vygostsky. Adoro falar sobre educação, não só falo sou educadora e como tal me vejo no direito de dizer e falar que as coisas não estavam bem, mas não acredito que essa proposta possa melhorar. Finalizo que sempre votei no PT por acredita como fez Erundina e a Marta com os CEUS que eles poderiam melhorar nossa educação e fico triste ouvir o secretário dizer que eles estão arrumando o que nesses 21 anos segundo ele foi destruído. Como?

  3. Avatar de Liz Rabello Liz Rabello disse:

    “Reprovação, é minha primeira dúvida, na minha opinião é um ponto muito sério que dá poder ao professor, e acredite tem professor assim, que reprovará o aluno por simplesmente não ter uma letra cursiva(de mão), bonita, ou pior, poque ele conversou a aula toda..Há péssimos profissionais na educação”…

    Queridas amigas Kelli e Cristina… Copiei a crítica que vocês fizeram a educadores da rede municipal… DÁ PODER? Não vejo assim… Baseada em que pesquisa, de fato, uma crítica tão atroz, que tira de nós, os educadores, o DIREITO DE AVALIAR O NOSSO ALUNO, O NOSSO TRABALHO?

    Tenho muitos silêncios a pautar e muitos gritos a submeter aos nossos governantes, e deles, espero tudo, do pior ao melhor… Mas quando meus próprios companheiros de luta se colocam na posição de SUPOR que nós não temos capacidade para o nosso trabalho e precisamos de leis que nos obriguem a fazer… Daí eu fico triste! E torno a perguntar: Onde está a ética?

    • Avatar de Cristina Cristina disse:

      Liz, a ética está justamente em não precisar reprovar. Quando falo de poder estou dizendo o da educação oferecida a esses alunos. Não acho que a progressão continuada, diferentemente de aprovação automática seja o maior problema da educação. Faço uma pequena analogia.Falamos tanto da necessidade de reprovar esquecendo que ela é uma renuncia a educação. Afinal quem gostaria de ir a um médico que garante dos seus 100 pacientes tratados, 20 pra ele seria uma número razoável de perda. Estamos falando de um ano da vida de crianças que ás vezes precisam ( aqui caberia uma melhor discussão da proposta de como fazer isso ) de mais tempo, de maior acompanhamento que naquele período não foi possível, que certamente se a organização do ciclo funcionar ela poderá ter a possibilidade de avançar. Não sou contra nenhum tipo de reforma, ainda mais se tratando de educação e da nossa que como disse está ruim, mas enquanto educadora acredito que precisamos ser ouvidas, somos nós que fazemos a educação todos os dias, certa ou errada somos nós. Temos tanta coisa ainda por fazer, não estou apenas criticando a proposta estou apontando que ninguém coloca em prática ou faz algo em que não acredita e não participou da construção. O poder que falo não é o do professor em reprovar é justamente dele proporcionar uma educação que veja a criança como sujeito desse processo.

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