Neotecnicismo digital

Um novo estágio de controle do magistério e dos estudantes vem na onda das tecnologias digitais. Ele combina demandas definidas pela BNCC – base nacional comum curricular – e demais bases daí derivadas (formação de professores e de diretores), métodos de ensino e processos de avaliação – tudo embarcado em plataformas de aprendizagem – híbridas ou não.

O crescente entusiasmo pela combinação de tecnologias embarcadas em artefatos digitais (celulares, tablets, computadores, etc.) ganha um novo impulso, reanimando os velhos tempos da tecnologia educacional cuja trajetória se iniciou ainda na década de 70 com os antigos mainframes dos centros de computação.

A tecnologia não é, necessariamente, nossa inimiga, no entanto, não podemos dizer o mesmo do projeto educativo que ela traz embutido. Este projeto é herdeiro das mesmas lógicas pelas quais o capitalismo promove, ao longo da sua história, o revolucionamento na sua base produtiva: introdução de mais tecnologia combinada com aumento de controle do processo, precarização e intensificação do trabalho, e ampliação incessante de mercado – fatores contrariantes das crises nas quais ele se envolve e, sem os quais, não consegue empurrá-las para frente.

A questão não é nova. Primeiro, a pedagogia sob o capitalismo se constituiu predominantemente como um “tecnicismo” que, nas palavras de Saviani, visava subordinar a atuação do professor aos ditames dos processos e métodos de ensino e, claro, de suas finalidades educativas. Dizia Saviani (1983):  “… na pedagogia tecnicista dir-se-ia que é o processo que define o que professores e alunos devem fazer, e assim também quando e como o farão” (p. 17).

O impacto do neoliberalismo nos países centrais introduziu um refinamento neste controle descrito por Saviani. Uma nova versão do tecnicismo preservava a padronização e ampliava o controle através da predominância da avaliação externa de larga escala, implementada a partir de uma teoria em que o professor e a escola eram responsabilizados de fora do sistema educacional pelos resultados de aprendizagem. Este controle externo, potencializava os já existentes controles internos. Em 1992 chamei esta nova versão de “neotecnicismo” – em uma alusão às pressões do neoliberalismo que se constituía no Brasil (Freitas, 1992).

Atualmente, este neotecnicismo atinge seu nível mais avançado, agora em sua versão digital, virtualizando e ampliando este controle sobre professores e estudantes, pressionado pelas mudanças no mundo do trabalho que mercantilizaram as próprias relações sociais (Huws, 2014), inclusive a relação professor-aluno, hoje mediadas por tecnologias de informação e comunicação, tendo agora como horizonte as finalidades educativas meritocráticas do padrão sócio-político neoliberal. Os proponentes deste novo estágio não escondem a sua vinculação com o mundo da revolução empresarial 4.0 chamando esta nova etapa de Educação 4.0:

“Impulsionada pela Indústria 4.0 e seus impactos sobre a economia e o mundo do trabalho, a Educação 4.0 vem ganhando força. Ela se apropria das tecnologias digitais – não só como ferramentas, mas como agentes de transformação – para repensar as experiências de aprendizagem nas escolas.”

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Já em 2011, apontávamos para uma possível evolução em direção a um “neotecnicismo digital” quando afirmávamos que “para o neotecnicismo, a educação somente pode melhorar por adição de tecnologia e aumento de controle” (Freitas, 2011).

Estas modificações foram aceleradas pela pandemia. No entanto, estas mudanças já estavam em curso bem antes.

Temos então dois núcleos conceituais que ajudam a explicar esta nova escalada e que precisam ser desenvolvidos com mais pesquisa: por um lado, está a configuração e avanço de um “neotecnicismo digital” que incorpora a teoria da responsabilização por metas e a teoria da escolha pública, agora com apoio de nova roupagem tecnológica.

Juntas, estas teorias reformulam os espaços e tempos educativos: a primeira, responsabilização por metas, apoiando-se agora em novas tecnologias de informação e comunicação, virtualiza e amplia o controle dos objetivos, conteúdos e processos educativos sobre o magistério, incorporando no trabalho pedagógico, via bases nacionais, as demandas que a crise do capitalismo vai impondo ao mundo do trabalho 4.0; a segunda, a teoria da escolha pública, coloca em marcha variados processos de privatização da educação com vistas a retirar a educação do âmbito do Estado e colocá-la em mãos seguras: o empresariado.

Além deste núcleo conceitual, devemos incluir ainda um segundo: a meritocracia, que encarna finalidades educativas da nova escalada, o empreendedorismo, por meio das quais o indivíduo é ensinado a ser gestor da sua própria acumulação de competências e habilidades, com as quais deve se apresentar ao mercado concorrencial, apto para lidar com as novas ferramentas digitais demandadas pelo mundo do trabalho. O empreendedorismo vem embalado na proclamação do “protagonismo do estudante”, do “ensino ativo”, do “ensinar fazendo”, “ensinar por projetos” etc.

Para Hayek (ver Gamble, 2018), o empreendedorismo tinha duas funções: primeiro permitir que as pessoas sentissem os efeitos da liberdade de acumulação sob o capitalismo, experimentando-o em sua individualidade; segundo, criar um efeito disruptivo sobre as tentativas de planejamento das políticas econômicas pelo Estado, multiplicando os agentes de decisão no interior da economia.

A nova onda de tecnologia educacional 4.0 não é, então, uma mera modernização tecnológica da escola, mas uma “recriação” de seu projeto com implicações para o trabalho do magistério e do estudante. Devemos ver com muita cautela – e não com entusiasmo pueril – a nova onda de tecnologias da comunicação e informação que está invadindo a escola e questionar o projeto educativo que vem embarcado nestas tecnologias.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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2 respostas para Neotecnicismo digital

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