J. P. Lemann (76), dono do conglomerado da cerveja chamado AB-InBev e possuidor de meros 83,7 bilhões de reais, o mais rico do Brasil e presidente da Fundação Lemann, pontificou, nos Estados Unidos, ao lançar seu Centro para Estudos do Brasil na Universidade de Columbia, em Nova York, que:
“Está cheio de gente no Brasil que acha que igualdade é uma beleza. Eu acho igualdade uma beleza também, só que não funciona. Igualdade de oportunidade, isso sim. Agora, igualdade por igualdade… As pessoas não são iguais.”
Lemann resume bem a ideologia liberal. É esta mesma ideologia que motivou a adoção da curva normal como base para a avaliação com testes padronizados. Nesta visão, os testes revelam o mérito, o esforço de cada um. Testam-se pessoas inseridas em situações sociais diferentes e depois compara-se. Acha-se a diferença, que seria a expressão do mérito.
Quando esta explicação foi questionada nos idos dos anos 70 do século passado, foi necessário que incluíssem o nível socioeconômico dos avaliados. Mas só para dizer que ele, de fato, tem influência no desempenho do avaliado e novamente deslocar a culpa, agora, para o mérito da escola que deveria garantir igualdade de oportunidades dentro dela, a despeito da realidade do aluno. Com isso, além do indivíduo, a escola também passou a ser culpada. E quem de fato produz a desigualdade social, fica oculto na acusação ao indivíduo e à escola, ou na constatação de que não podemos esperar o mundo mudar para mudar a educação. Quando não, pior ainda, na constatação de que a educação mudará o mundo.
O sistema social que gera as próprias desigualdades sociais e que explica boa parte dos resultados dos estudantes, até 60%, é poupado. É isso que a fala liberal quer proteger: a dinâmica social excludente é explicada como uma mera dinâmica escolar excludente. Esta segunda é, para eles, um atentado ao direito da criança aprender, a primeira não.
A fala liberal prossegue com o discurso de que acessar educação permitirá acessar também outros direitos: o direito à renda, ao trabalho, à saúde, à habitação, ao respeito social, à diversidade etc. Cria-se uma circularidade: se não aprenderem, continuarão na pobreza; e uma vez na pobreza, sem acesso aos demais direitos, não aprenderão. Este aparente dilema tem sua utilidade na relações sociais vigentes.
Nas atuais condições, há que se reconhecer, pelo menos, que devemos atuar nas duas áreas simultaneamente: fora da escola e dentro da escola, fixando metas negociadas e atingíveis. Reduzir a questão da aprendizagem a um problema interno da escola, é esconder-se do problema à moda liberal. Que tal instituir uma Lei de Responsabilidade Social que defina metas para a redução da desigualdade social, medida pelo Índice Gini?
Mas os liberais preferem um caminho mais fácil. Para eles, a qualidade da educação é produto do esforço dos alunos e da responsabilidade da escola, que tem que garantir a oportunidade da criança se desenvolver. É um assunto individual. Claro, estava me esquecendo, os empresários também precisam ter responsabilidade social e ajudar a educação, através de suas Fundações. De preferência, deduzindo a ajuda dada em seu imposto de renda. Ou seja, o sistema está bom, são as pessoas ou as instituições que não aproveitam ou não dão as oportunidades.
Parte-se da ideia (óbvia) de que as pessoas são naturalmente diferentes, que os testes apenas captam a diferença e a expressam na curva normal. Para esta visão, não é possível que todos se saiam bem em um exame, a menos que ele seja uma fraude. Mas a educação opera com a lógica oposta.
Os testes não captam apenas diferenças acadêmicas. Eles captam desigualdades sociais além das acadêmicas, e sobre isso não há dúvida. No entanto, os testes e a curva normal são usados como “justificativa científica” para as diferenças acadêmicas e sociais captadas a partir de uma engenharia de medida marcada pela lógica de que a igualdade de resultados não pode existir.
Em um post anterior, tentei discutir porque a curva normal não serve para a educação, ainda que seja um instrumento para a seleção. Mas, selecionar não é avaliar e muito menos educar. Como dizia B. Bloom: com tempo e recursos adequados todos podem aprender tudo. Isso é mais verdadeiro ainda, se estamos falando de educação básica.
O ponto central, escondido na fala dos liberais, é que eles desconsideram o que aconteceu com as pessoas antes delas se posicionarem para disputar a oportunidade dada. Consideram que todos chegaram à linha de largada em condições de competir, mais ainda, se não o fizeram a culpa é deles mesmos que não se esforçaram por agarrar as oportunidades anteriores. O mesmo vale para a escola.
Assim, a vida é uma sequência de oportunidades perdidas para alguns e aproveitadas por outros. As oportunidades são para todos, mas apenas alguns, com seu mérito, conseguem alcançá-las. O esforço é o definidor do progresso e todos estão em condições de se esforçar. A diferença que emerge desta corrida, deve-se a diferenças pessoais, afinal, as pessoas não são iguais. Eis o engodo da igualdade de oportunidades, um jogo de cartas marcadas desde o início, guiado por diferenças prévias não reveladas. Sem atacar a causa social, as “ondas de pobreza” vão chegando sucessivamente à escola pública, uma após outra, sem fim. As condições para lidar com estas populações, são negadas, fechando-se o círculo.
A tese liberal oculta o fato de que para as diferenças individuais se manifestarem, as diferenças sociais prévias devem ser equalizadas para menos. Algo que as políticas educacionais de responsabilização não conseguiram até agora fazer. Alguém pode não ir para a universidade porque não tem interesse, uma diferença pessoal, mas isso não pode ocorrer por viés socioeconômico.
Por tudo isso, a fala liberal pela melhoria da educação deve ser entendida como uma readequação dos níveis de qualificação da força de trabalho à revolução tecnológica produtiva sob o capital, sem alteração das hierarquias de qualificação – que inclui também a não qualificação na base da pirâmide. Afinal, se toda a mão de obra fosse altamente qualificada, o lucro das empresas diminuiria, pois os salários aumentariam. Portanto, é um discurso pela melhoria da educação que preserva as distâncias da hierarquia existente, e dessa forma desigual (excludente).
O liberal tem que rejeitar a igualdade de resultados, pois com isso ele está preparando a argumentação para justificar a desigualdade social e em especial a de salários, sem a qual seu lucro não sobrevive. Pega carona nas desigualdades individuais, inegáveis, e camufla as desigualdades sociais nelas. Para conforto ideológico e justificativa política, esta exclusão tem que ser vista como sendo da escola ou do indivíduo e nunca dele. No limite é do próprio Estado que não usa bem os impostos que ele já paga.
E sendo assim, o liberal, depois de promover a desigualdade social com um modelo de sociedade que outorga a alguns o direito de explorar outros e lançá-los na miséria, deita e dorme.
Este é o fundamento também da benemerência dos Lemann: afinal, eles ajudam a dar igualdade de oportunidade através da educação.
Pobres, agradeçam ao Lord Lemann.
Veja só como são as coisas….
Giovani Comerlatto IFG — Valparaiso GO http://www.valparaiso.ifg.edu.br 61 84648135 – ws
Professor,
Porventura não usar a curva norma tornaria as coisas menos desiguais na realidade? Fico imaginando qual seria outra possibilidade.
Não ficariam, mas pelo menos não ocultaríamos a desigualdade em um manto de “normalidade”. Abraço.
Só não concordo com a introdução do personagem. A vida é maior e igualdade é realmente relativo. Igualdade jurídica constitucional é uma coisa. Igualdade nas políticas de governo… Vejo com mais crítica.
Transferência de renda sobre o trabalho assalariado é isso!
Na educação então… Nem se fala…
Professor é tudo igual perante disciplina e jornada de trabalho? Não. Então? Como ficamos? A complexidade requer diálogo.
A questão do neoliberalismo apresenta um buraco mais fundo. Um aspecto a ser considerado é que todos tenham acesso à educação, outro é que ela deveria ser de qualidade para todos o que de fato não ocorre.Tal fato tem determinado, na área, a oferta de serviços particulares, pois o estado, enquanto poder público, não atende à demanda.Isso vem provocando o movimento pela privatização do ensino que, por vezes, possui qualidade duvidosa.
É importante observar, também, que nenhum dado estatístico deve ser analisado isoladamente, isto é, fora de um contexto social,econômico e político no qual se insere, aumentando
principalmente na área da educação, a possibilidade de falsas análises.