Em outros períodos de crise passados, em que o empresariado se viu ameaçado em suas taxas de acumulação de riqueza, já ouvimos a frase, dita por Jarbas Passarinho momentos antes da ditadura militar editar seu Ato Institucional 5: “As favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”.
Esta é a postura do capital ante a necessidade de tomar decisões que recoloquem a “ordem” e restabeleçam o “progresso” das taxas de acumulação. A citação pode ser usada hoje em sua forma mais plena, quando o protótipo de “burguesia” brasileira recebe um alerta claro da burguesia internacional – esta sim real: ou faz as reformas ou dane-se. Lembram-se da Grécia? Portanto, não esperemos escrúpulos nas suas ações do atual bloco de poder: “às favas com os escrúpulos” será a regra.
Para os empresários, a maioria da população deve-se contentar com a precarização das condições de vida e trabalho, o que, afinal, é sempre melhor que o desemprego: eis a sua “justificativa moral” para as reformas, como se outra saída não houvesse. Para eles, se a condição do próprio empresariado é melhor do que o resto da população, por outra razão não será, senão por puro e merecido mérito. Se os demais forem tão esforçados como eles, também chegarão lá um dia.
O capital sabe que este discurso está desgastado nas periferias onde as gerações mais novas olham para as gerações mais velhas e observam que o “esforço” não as levou muito longe, e esta é uma das razões pelas quais os empresários resolveram também controlar mais de perto o Estado e suas instituições (a escola por exemplo). O mote, agora, é que a educação as salvará.
A linha de análise que foi adotada por ocasião do golpe contra Dilma, tem se revelado correta a cada dia que passa. O golpe, que a mídia dizia não existir, foi tramado junto com o próprio empresariado do “pato amarelo” (hoje silente), com a grande mídia e o Estado (uma dobradinha do legislativo e judiciário – ambos hoje desnudados) e tinha por finalidade garantir a adequação do Brasil às necessidades das cadeias produtivas nacionais e internacionais, diminuindo o “custo Brasil”, além de garantir que o pagamento dos juros da dívida não fosse tocado pelo progressivo custo das políticas sociais. Isso tudo, foi traduzido em um conjunto de reformas que agora já está aprovado ou em vias de ser aprovado.
Temer é a pessoa mais adequada para mandar “às favas os escrúpulos” e realizar as reformas – e de quebra barrar as investigações que envolvem uma parte dos políticos – a dele. Os 30% mais ricos deste país aprovam a continuidade do governo Temer, mesmo mergulhado em escândalos. Nos Estados Unidos o empresariado tolera Trump.
De fato, o capital só tem um lado: o dele. Se os seus interesses estão garantidos, não importa nem mesmo a corrupção. Ela só é importante quando compromete os interesses do capital. Se não é esse o caso, “às favas com a corrupção”. Para os que ainda não perceberam, o Estado brasileiro já está sob intervenção do empresariado – não precisa acionar os militares. Nada acontecerá que os empresários (e a mídia) não queiram.
Meus amigos me lembrarão de que há “resistência”, “contradição”, etc. Mas tais conceitos, se não são assumidos por alguém de carne e osso, são meros conceitos. Conceitos, sozinhos, não mudam realidade. A resistência não é um fenômeno espontâneo. A única forma de contrapor-se, no curto prazo, a esta subordinação do Estado aos empresários é com gente na rua, e muita. Em algum momento, agora ou no futuro, isso poderá acontecer – na dependência dos efeitos que venham a produzir as novas contradições abertas pela investida empresarial (especialmente as reformas). Isso se os “gramscianos” de tipo reformista, comuns por aqui, não inventarem algum caminho de volta às práticas políticas usuais durante os governos de coalizão do PT, internalizando a luta no interior do próprio Estado e esquecendo-se, de novo, de mobilizar as bases dos movimentos sociais, ou pior, promovendo câmaras de governança dentro do Estado que desmobilizam as bases destes movimentos. Isso enterraria até mesmo as expectativas de médio prazo – a menos que as próprias bases passem por cima de suas lideranças, premidas pelas condições de vida que serão precarizadas.
Em resumo, a saída sempre foi por baixo e não por cima – mesmo que mais lenta. Um bom exemplo desta enrascada em que nos metemos é a própria situação do Fórum Nacional de Educação. Quando se discutiu sua criação, muitos questionaram que ele nascesse tão ligado ao Estado. Isso se revelou, posteriormente, também na forma de seu funcionamento, mas foi tolerado, afinal era gente progressista que estava do lado de lá. A situação mudou e, agora, obriga as entidades mais avançadas a se retirarem do FNE e constituir um Fórum independente – como deveria ter sido deste o começo, se tivéssemos acreditado mais em nossa mobilização do que nas “conversas de governança”.
Se não tivermos memória curta, pelo menos tiraremos de tudo isso uma lição que pode ser útil na luta futura: o Estado, em última instância, apesar de aparentemente se apresentar como representante de todos, de fato, representa a classe empresarial que o controla. Como já disseram pessoas mais sabidas: estar no governo não é ter necessariamente o poder. O Estado está a serviço do empresariado e não da população. Se necessário, pela força física e/ou intelectual das suas instituições – com direito a mandar “às favas os escrúpulos”. Somente a pressão organizada (em todos os níveis) pode faze-lo recuar. E é só nesta circunstância que ele negocia, aguardando o momento de contra-atacar. Portanto, qualquer luta por dentro do Estado, está pré-condicionada em seu alcance à existência de lutas simultâneas do lado de fora do Estado, nas bases da sociedade, nos movimentos sociais.
Isso deve servir também para as lutas educacionais. É por isso que estamos agora surpresos e desarmados com a violência do avanço destas reformas. Acreditamos demais no Estado. Ocorre que não basta criar teorias pedagógicas progressistas e leva-las ao Estado, às câmaras de governança – em reuniões entre lideranças. É preciso recuperar o que sempre se soube: as teorias devem ser produzidas em estreita interação com a base dos sindicatos, dos movimentos sociais da cidade e do campo e devem, para serem bem sucedidas, ser uma aspiração das bases destas organizações e movimentos – destes mesmos indivíduos que agora são lembrados para sair pessoalmente às ruas contra as reformas.
Os partidos de esquerda e a própria esquerda mais amplamente se encantaram mais com as eleições do que com a formação política e a mobilização em suas bases. Devemos reconhecer que nos afastamos delas, acreditando em “conversas de governança” baseadas na possibilidade de uma colaboração. Portanto, é hora de se debater as estratégias e táticas futuras sob outra ótica e não apenas reivindicar uma volta a práticas passadas, ainda que com diferentes personagens.
Texto de Gramsci sobre a espontaneidade das massas:
“… desprezar os movimentos ditos ‘espontâneos’, ou seja, renunciar a dar-lhes uma direção consciente, a elevá-los a um plano superior, inserindo-os na política, pode ter frequentemente consequências muito sérias e graves. Ocorre quase sempre que um movimento reacionário da ala direita da classe dominante, por motivos concomitantes: por exemplo, uma crise econômica determina, por um lado, descontentamento nas classes subalternas e movimentos espontâneos de massa, e, por outro, determina complôs de grupos reacionários que exploram o enfraquecimento objetivo do Governo para tentar golpes de Estado. Entre as causas eficientes destes golpes de Estado deve-se pôr a renúncia dos grupos responsáveis a dar direção consciente aos movimentos espontâneos e, portanto, a torna-los um fator político positivo”. Cadernos do Cárcere, V.3.
Que lucidez, e escreveu no início do século passado e não nos anos 2013, 2014, 2015…
Claríssimo, mas quando alguns grupos da universidade assimilam Gramsci, infelizmente, o fazem a partir de sua posição de classe. Aí é que o problema ocorre… Há boas e más interpretações do autor, é claro, mesmo dentro das universidades, felizmente.
Parece-me que a utilidade da teorização política de Gramsci fixa plenamente validada na sua definição de Estado ampliado – que incorpora ao fluxo de poder movimentos sociais, associações civis, sindicatos etc. – e propõe a luta pela hegemonia no plano da construção simbólica, além do plano estritamente material. Por isso, definir o que chamamos de qualidade da educação ou a educação que queremos – como nos alertava Antonio Gois ou L.C. Freitas, já não me recordo -, num movimento por fora do oficialismo estatal mas tb. a ele dirigido, é fundamental, pois define as premissas políticas do debate.