Ouvimos dizer com frequência que, hoje, a democracia liberal representativa está em perigo, em crise. No entanto, a democracia liberal é apenas a estrutura política do sistema capitalista vigente, a qual emergiu hegemônica em meio às lutas dos liberais contra os conservadores e socialistas, ao longo do século 19. Mas, além destas lutas, há outra menos conhecida, a luta entre os próprios liberais.
A revolução francesa é um marco fundamental desta caminhada. No final do século 18, o liberalismo, inicialmente formulado pelo inglês John Locke (1632-1704), enfrentava os conservadores na França. Na Inglaterra a batalha tivera início mais cedo. Estes dois países construiriam na primeira metade do século 19 o Estado Liberal (Wallerstein, 2011). Durante os anos que se seguiram e até os dias de hoje, a batalha política envolveria liberais, conservadores e socialistas, bem como as suas múltiplas combinações políticas.
“O período de 1815-1848 foi aquele em que todos pareciam estar se movendo com incertezas neste terreno político transformado. Os reacionários tentavam reverter o relógio, desfazer o terremoto cultural que foi a Revolução Francesa. Eles descobriram, como nós vimos, que isso não era realmente possível. Os estratos dominados (e reprimidos), por sua vez, estavam em busca de modos de organização apropriados e efetivos, e o centro liberal emergente não tinha certeza de como deveria, ou poderia construir uma base política apropriada para controlar o tumulto, concentrando-se, como vimos, na construção de estados liberais – em primeiro lugar, e o mais importante, nos países mais poderosos: a Grã-Bretanha e a França. (Wallerstein, 2011, posição 4437.)
A força com que emergiram os liberais ocupando o centro político, no século 19, obrigou tanto conservadores como socialistas a fazer composições e concessões com o objetivo de manter-se na luta política.
Nestes embates do século 19, consolida-se uma vertente liberal que procurou construir um conjunto de teses que sofreria a influência da luta política travada por conservadores (em defesa da realeza moribunda) e por socialistas (em defesa dos trabalhadores). A este liberalismo emergente, Wallerstein (2011) chamou de liberalismo centrista, cuja forma de governo consolidou-se na democracia liberal representativa. No centro da proposta, estava a noção de cidadão. Diz o autor:
“O conceito de cidadão [desenvolvido pela revolução francesa] tinha a intenção de ser inclusivo – insistir que todas as pessoas em um estado, e não apenas algumas pessoas (o monarca, os aristocratas) tinham o direito de ser parte, uma parte igual, do processo de tomada coletiva de decisão na arena política”. (Posição 4197)
Os desenvolvimentos que se seguiriam à revolução francesa mostrariam que esta alardeada inclusão, era de fato menos abrangente do que o conceito sugeria e que, quando ela avançou, foi à custa de muita luta.
A emergência da democracia liberal representativa foi expressão da consolidação do sistema capitalista e garantiu a sua expansão durante o século 20, pelo menos até 1970. O capitalismo, já se disse, é um regime de crises cíclicas. Estas, a partir de 1970, adquirem um caráter de crise sistêmica permanente (Wallerstein, 2002, 2013) (Meszaros, 2009). Falar, portanto, de uma crise da democracia liberal é, na verdade, falar de uma crise do próprio sistema histórico capitalista. De fato, a crise sistêmica do capitalismo está na base da crise da democracia liberal representativa.
A emergência do liberalismo centrista além de combater conservadores e socialistas, também superou e isolou outra vertente igualmente liberal que coexistia já no século 19. No entre-guerras, no início do século 20, esta vertente se agrupou em Viena sob a direção de Ludwig von Mises (1881-1973) e criou as bases do que seria conhecido como globalismo ou neoliberalismo, em resposta ao esgotamento dos impérios na primeira guerra mundial.
A proposta era contornar e combinar o desejo de soberania nacional emergente da primeira guerra mundial, com a criação de uma estrutura internacional que garantisse o livre fluxo de capitais ao redor do mundo, sob a égide do livre mercado (Slobodian, 2018).
Esta posição era um desdobramento de teses de Federic Bastiat (1801-1850), economista, membro da Assembleia Nacional francesa, representante dos interesses da indústria vinícola, e uma das referências dos liberais que se opõem ao liberalismo centrista. No centro da discórdia estava também o papel do Estado que Bastiat considera uma “ficção” na qual todos se esforçam para viver às custas dos demais. Bastiat, portanto, descarta a visão de uma cidadania inclusiva que emergiu da revolução francesa. Diz sobre o Estado:
“O homem rejeita a Pena, o Sofrimento. E no entanto, está condenado pela natureza ao Sofrimento da Privação se não aceita a Pena do Trabalho. Logo, não tem mais do que a escolha entre estes dois males.” (Bastiat, 2013).
Este movimento neoliberal de enfrentamento ao liberalismo centrista (e ao avanço da social democracia e dos socialistas) teve relativo sucesso e ao final da segunda guerra mundial, várias estruturas foram criadas com a finalidade de garantir a internacionalização e manutenção do fluxo de capitais, por exemplo, o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e mais tarde a Organização Mundial do Comércio (Slobodian, 2018). Estas instituições conviveram com o liberalismo centrista – até que a crise do capitalismo se fez sentir mais forte e, depois de 1970, potencializou a crise fiscal do Estado que seria agravada a partir de 2008 com a crise da financeirização.
Teóricos como Bastiat consideram que o Estado é um “ladrão legalizado”, autorizado a cobrar impostos. Seu pensamento é compatível com outro teórico, Herbert Spencer (1820-1903), que considera que o Estado jamais poderia assumir para si a ajuda àqueles que estão em situação de desamparo – isso só poderia ser feito pela família ou por uma pessoa que quisesse, por vontade própria, proceder assim (filantropia). Para ele, se o Estado assumisse essa atitude, ela não seria educativa e interferiria com o curso normal das leis naturais que regem a evolução do homem.
“A humanidade está sendo pressionada pelas inexoráveis necessidades de sua nova posição – está sendo moldada em harmonia com elas, e tem que suportar a infelicidade resultante da melhor forma possível. O processo deve ser vivido, e os sofrimentos devem ser suportados. Nenhum poder na terra, nem as astutas leis dos estadistas, ou esquemas de retificação do mundo dos humanos, as panaceias comunistas, as reformas que os homens já introduziram ou ainda introduzirão podem diminuí-lo muito. Intensificados, eles podem ser e são; e na prevenção de sua intensificação, a filantropia encontrará amplo espaço para seu emprego. Mas há um limite para mudar a quantidade normal de sofrimento a qual não pode ser diminuída sem alterar as próprias leis da vida ”. (Spencer, 1960, posição 1654)
São estas visões que após 1970 tentam ganhar hegemonia ao redor do mundo – apesar dos seus maus resultados – com o nome de “neoliberalismo”. Estas e outras teses de Federic Bastiat (por exemplo sobre tarifas e livre mercado) influenciam o pensamento de Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek (1899-1992), pais do neoliberalismo nascido em Viena (Slobodian, 2018). Nos Estados Unidos, seus representantes foram Milton Friedman (escola de Chicago) e James Buchanan e seus libertários (escola de Virginia).
São tais ideias que estão, igualmente, na base de uma geocultura meritocrática ancorada no princípio da concorrência e no livre mercado empresarial, e que legitimam a desigualdade social, assumindo-a como uma lei natural, na trilha de John Locke: vida, liberdade e propriedade. A vida é o seu futuro, a liberdade o seu presente. A propriedade é o resultado do que você fez com sua liberdade, durante a vida. Esta lógica não deve sofrer a interferência do Estado.
Este tipo de liberalismo não gosta de ser chamado de “neoliberalismo” pois alimenta a esperança de ser considerado o único e verdadeiro liberalismo. Independentemente disso, é assim que ficou conhecido mundialmente. Ele se desenvolveu paralelamente às teses do liberalismo centrista durante o século 20.
A crise prolongada do capitalismo nestas últimas décadas, oportunizou a retomada de uma guerra entre estas vertentes liberais, travada para “salvar” o capitalismo, e que opõe à estratégia liberal centrista a estratégia neoliberal, cujos postulados diferenciados já estavam postos no século 19. A questão do Estado volta a ser pautada. Acuados pela crise do capitalismo, os liberais centristas não têm como rejeitar a proposta econômica neoliberal, ainda que os primeiros divirjam dos aspectos autoritários deste Estado neoliberal e reafirmem o “estado de direito”.
Os conservadores, de tradição absolutista e autoritária, unem-se agora à vertente neoliberal, não menos autoritária quando se trata de garantir o livre mercado, e apostam na possibilidade de uma terceira “restauração conservadora” – após as duas tentativas fracassadas feitas no século 19, depois da revolução francesa de 1789. Pegam carona na restauração dos neoliberais sobre os liberais centristas e constituem uma coalizão cuja finalidade é impedir que a crise do capitalismo abra possibilidades para os projetos da esquerda social-democrática ou socialista, esperançosos de que se reverta a roda da história e se retomem as teses conservadoras.
Juntos, neoconservadores e neoliberais ganham tempo para construir cada um sua opção histórica e tentam restringir a democracia liberal representativa e demais instâncias de organização política e social que possam ser oposição às suas propostas de recomposição do sistema capitalista (sob o olhar complacente dos liberais centristas).
Portanto, ao afirmarmos que a democracia liberal está em crise, não podemos deixar de complementar que a crise da democracia é, antes, uma crise do próprio capital, a qual potencializa uma disputa no campo liberal, visando a troca de uma geocultura liberal centrista por uma geocultura neoliberal meritocrática.
Mas em que consiste esta crise estrutural do capitalismo? E como se organiza esta coalizão?
Continua no próximo post.