O essencial e o periférico no caso dos livros em SP

Muito se escreveu e falou sobre a tentativa de Feder, Secretário de Educação do governo Tarcísio, sobre a questão dos livros didáticos no estado de São Paulo. Estas críticas com maior frequência, focam o periférico e deixam passar o principal.

O periférico é o suposto favorecimento de uma empresa na qual o Secretário participava e se retirou antes de assumir a Secretaria de Educação, cortando vínculos formais com ela. Antecipando-se a questionamentos jurídicos, o governo divulgou que as compras desta empresa pela Secretaria estão impedidas de agora em diante.

Mas o que importa, mesmo, é o essencial: o desejo de desenvolver seu próprio material didático independente do fornecido pelo Ministério da Educação. O principal é a recusa dos livros fornecidos pelo MEC e a edição de seu próprio material que primeiro ia ser só digital e depois, sob pressão, passou a ser “slides impressos”.

É sabido que a forma de pensar bolsonarista, da qual o atual governador é produto, trabalha entre a negação do Estado (quando ele não está lá) e a afirmação do Estado para seus propósitos (quando está lá). Faz parte de um processo que visa, a longo prazo, radicalizar o “mercado”, ou seja, o capital, como palco do exercício pleno da liberdade (em oposição à democracia). Ridicularizar estes personagens é ignorar seus métodos e objetivos e desconhecer que este é um momento crucial de enfrentamento político que define o futuro da democracia liberal e pode atrasar outras formas mais avançadas de democracia.

Estas vertentes “libertarianas” da direita radical operam conjuntamente com a direita neoliberal, principalmente nos momentos em que a esquerda as enfrenta com alguma chance de sucesso. De certa forma, é o “bicho papão” com o qual o neoliberalismo procura assustar e capturar principalmente a classe média, para ganhar uma sobrevida.

No centro destas concepções está a “teoria da escolha” que delega a vida social para cada indivíduo na forma de “escolhas pessoais” pelas quais ele é o único responsável – para o bem ou para o mal – cortando qualquer possibilidade de regulação coletiva – daí a ira de algumas de suas vertentes para com governos e com o próprio Estado.

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Como Tarcísio está no governo estadual, ele usa de seus poderes para recusar o material fornecido pelo governo federal, passando a mensagem de que é anti-sistema e, ao mesmo tempo, envia uma mensagem à tropa local de que controlará o conteúdo da escola construindo um caminho que lhe permita impor um conteúdo escolar que considere seguro: seus filhos estão em boas mãos aqui no estado.

A digitalização é um instrumento que permite controlar eficazmente o conteúdo escolar que a Secretaria de Educação de SP quer que chegue na ponta, nas salas de aula – mesmo que seja na forma híbrida.

Neste sentido, é instrutivo ler um post de Gary Rubinstein sobre formas de “reestruturação” de escolas em curso nos Estados Unidos. Ele informa que como parte deste processo, todos os professores de 29 escolas em um distrito no Texas precisaram se candidatar novamente para manter seus empregos. Eles receberam aumentos e oportunidades de bônus com pagamento por mérito baseado na pontuação de testes de seus estudantes – ou seja, pagamento por valor agregado nos testes. Além disso, como parte das mudanças, o professor será como um “cirurgião” fazendo a parte central do trabalho, “enquanto outras tarefas como avaliação, planejamento de aulas e disciplina são feitas por outros profissionais” e “as bibliotecas dessas escolas são convertidas em centros de disciplina onde os alunos são enviados para assistir a uma versão transmitida ao vivo da aula na tela do computador.”

Ou seja, o professor é afastado do planejamento e da avaliação, de forma a perder o controle do que é fundamental no seu trabalho e se converter num mero seguidor de instruções dadas por outros: os planos de aula e os materiais didáticos são fornecidos por desenvolvedores de currículo, ou seja, os professores são obrigados a seguir roteiros e cronogramas de ritmo de aprendizagem. As tarefas que são diferentes de “dar aula” são executadas por outros, entre elas a realização da própria avaliação a qual passa a ser feita por uma equipe de suporte, afastando a avaliação do próprio processo de ensino.

Como afirma Gary:

“A razão pela qual nenhum esforço de recuperação como esse funcionou é que ele se baseia em suposições errôneas sobre qual é a causa das notas baixas nos testes nessas escolas, de modo que qualquer solução baseada nessas suposições está fadada ao fracasso. É como tentar tratar uma perna quebrada dando a um paciente uma transfusão de sangue completa.”

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Dois aspectos estão combinados nestas ações: um pelo lado técnico, de origem neoliberal, que é pressionar os professores para elevar as notas na competição por índices regados a bônus; e outro de carácter conservador, que é controlar o conteúdo distribuído no sistema escolar.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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2 respostas para O essencial e o periférico no caso dos livros em SP

  1. Bom dia, professor Luiz Carlos. Você toca no ponto nevrálgico dessa questão e, acrescento outro, que acho que vai ao encontro do que disse: os professores estão cansados, esgotados e propostas desse tipo, que tirariam dos professores o ‘peso’ e a ‘burocracia’ de ter que preparar os planos de aula, avaliações, pensar nas metodologias, etc, pode ser visto como tentador e como necessário pela maioria dos professores, pois fazer tudo isso demanda tempo, estudo, esforço, o que muitos professores não conseguem ter, pela rotina e condições de trabalho impostas. Quando paramos para pensar, percebe-se que tudo faz parte de um grande projeto mesmo… ainda bem que nos resta a nossa liberdade de cátedra… um abraço

    • É isso. Primeiro intensifica e depois alivia colocando tudo em uma plataforma de ensino on line. Todos gostam. Em seguida, os atuais professores viram tutores de plataformas, em menor número e formados rapidamente e pagos também com breves salários.

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