A crise desta semana, na Secretaria de Cultura, mostra a natureza híbrida do populismo nacionalista reacionário.
Ele é apoiado por uma gama de frentes políticas das quais as mais importantes são a frente conservadora e a frente liberal (Gamble, 1988). Mas há outras: neonazistas, libertarianas – minoritárias, mas presentes. Isso faz com que a todo momento os conflitos políticos venham à tona em algum ponto do governo.
É uma grande frente que se une em torno ao ataque da democracia liberal e do próprio liberalismo centrista (Wallerstein, 2011) – de onde deriva a social democracia. Na mira está tudo que possa ser “coletivo” e “social” e, pelo oposto, leve à valorização do “individualismo”, do “livre-mercado” e promova a destruição do “Estado”, usando para tal o próprio Estado.
Brown (2019) mostra como, historicamente, o Estado assumiu, bem ou mal, a tarefa de mediar a promoção da “cidadania” e apoiar aqueles fatores que geravam seu fortalecimento – ou seja, olhar para o “coletivo”. A destruição do Estado inviabiliza a construção da cidadania liberal centrista e libera o individualismo que é o alimento do “mercado” – agora livre das amarras centristas:
“O ataque neoliberal ao social (…) é chave para gerar uma cultura antidemocrática de baixo para cima, ao mesmo tempo em que se constrói e legitima as formas antidemocráticas do poder do Estado de cima para baixo”. (Brown, 2019, posição 450.)
É isto que está em construção – a destruição do Estado como forma de liberar o individualismo. Todas estas frentes políticas híbridas têm como objetivo central o uso do Estado para a destruição do Estado – apesar de suas diferenças teóricas e do grau de destruição esperado.
Os neoliberais terceirizaram para os conservadores (e demais apoiadores, incluindo militares) a destruição do liberalismo centrista – aquele que associa o livre mercado com direitos políticos e sociais e que se converteu em um “inimigo interno” (Gamble, 1988) – em meio a uma forte crise do capitalismo iniciada nos anos 1970 e que, na visão neoliberal, se deveu à hegemonia das teses da social democracia (Mises, 1962).
Sob o pretexto de que é apolítico, o mercado espera que uma nova moral seja construída – como propõe Hayek -, desde dentro do próprio mercado.
Artigo de Alexa Salomão na Folha de São Paulo reflete bem a lógica atual do “mercado” no episódio da semana, mas não capta a essência da questão:
“Ao ignorar a indignação generalizada com o tom nazista do pronunciamento do já ex-secretário da Cultura, o mercado sinalizou o pior: que, se a economia ficar de boa, opera até contra a democracia.”
Leia aqui.
Não é que importe unicamente a valorização do dinheiro e não importe se há ou não democracia no país. É que o tal mercado quer construir uma nova moral e uma nova democracia desde dentro de si mesmo, uma que eleve o individualismo das trocas voluntárias à regra básica de constituição das relações humanas, regada a competição e meritocracia. Algo que pode bem receber o apelido de “darwinismo social”.
O episódio da semana, em que o governo Bolsonaro expôs demais suas roupas íntimas – desta vez na Secretaria da Cultura – antes Ministério da Cultura – pode ter contado com o silêncio tático do mercado, o qual continuou fazendo de conta que estava de cabeça baixa de olho nas planilhas das bolsas de valores como se não fosse com ele – mas é com ele. Ocorre que o “mercado” tem uma outra definição para a democracia que pretende que emerja de seu interior. Seu silêncio não é de indiferença, mas de conivência.
Hayek e outros neoliberais, como já analisei aqui, são mais explícitos. Hayek em visita ao Chile, concedeu uma entrevista ao El Mercurio, onde expõe sua teoria da “ditadura de transição”. O jornal chileno El Mercurio indaga Hayek sobre o que pensa das ditaduras. Hayek responde:
“Como instituições de longo prazo, sou totalmente contra as ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário para um período de transição. Às vezes é necessário que um país tenha por um tempo, alguma forma ou outra de poder ditatorial. Como você entenderá, é possível que um ditador governe de maneira liberal … Minha impressão pessoal … é que no Chile … testemunharemos uma transição de um governo ditatorial para um governo liberal … Durante essa transição, pode ser necessário manter certos poderes ditatoriais, não como algo permanente, mas como um arranjo temporário.” (El Mercurio, 1981, citado em Biebricher, 2018.)
A nova “democracia” do mercado tem lado: o dele. E ela se impõe – mesmo que ditatorialmente – contra a chamada democracia liberal representativa (centrista) que procurava conciliar capital e trabalho. Vitimado pela crise do próprio sucesso do capitalismo (Wallerstein 2011) o mercado se vê obrigado a radicalizar, já que as válvulas de segurança do liberalismo centrista keynesiano deixaram de ser um terreno seguro frente ao crescimento das mobilizações sociais. O Estado passou a ser o vilão da história ao acolher, sob pressão, as demandas sociais.
Como é difícil viver isso tudo!