Estamos assistindo, hoje, a uma enorme disputa por afirmação de valores na educação – a “guerra” é por valores que justifiquem uma determinada ordem social (ou desejo de uma ordem) e, claro, por suas vantagens. A educação está no centro desta disputa porque é formadora da juventude – seja em sua forma mais ampla, seja na mais restrita – quando realizada em sala de aula.
Alguns propõem privatizar a educação, por exemplo, não apenas porque as empresas querem atuar nela para ganhar mais dinheiro ou para o governo gastar menos dinheiro, mas também porque, com isso, ela será realizada por agentes seguros aos olhos do sistema: militares, sacerdotes e empresários. Há, então, razões ideológicas adicionais ao faturamento.
O campo da política, que se expressa pelos partidos políticos que organizam os códigos e desejos sociais, passa por transformações e seus dilemas e enfrentamentos repercutirão cada vez mais na educação. Três grandes filosofias disputam o cenário: conservadores, liberais e socialistas – sem falarmos das interfaces.
Lenin dizia que a educação fora da política é hipocrisia. Por este entendimento, educação e política, ao contrário do desejo de muitos, não se separam. Compreender os projetos políticos é importante porque eles expressam valores que se assumidos pela educação determinam suas finalidades, objetivos e a própria organização do trabalho pedagógico.
Cada um dos projetos políticos procura, hoje, lidar com pelo menos dois terremotos sociais e políticos que estão se desenvolvendo há algum tempo: o esgotamento da hegemonia da América do Norte e o agravamento da crise estrutural do capital como regime de organização social.
G. Arrighi nos anos 90 do século passado já falava sobre o enfraquecimento da hegemonia americana. Naquela época o Japão chamava a atenção pelo seu desenvolvimento econômico acelerado sugerindo que uma troca de hegemonia na economia capitalista, ou seja uma quinta troca, poderia ocorrer por uma nova onda de expansão capitalista pelo leste asiático. Ao longo do século XXI, a China ultrapassou o Japão e hoje discute-se abertamente a possibilidade de que se concretize este processo de troca de hegemonia. Grande parte das ações do ditador Trump se devem a esta percepção de que a América precisa “ser grande de novo”. E se precisa ser “grande de novo”, então é porque está sendo superada.
O segundo terremoto é mais complexo ainda, pois envolve a paulatina e consistente crise estrutural do capital que está dificultando a manutenção da taxa média de lucro na área produtiva nos patamares históricos e cria dificuldades para a realização de investimentos.
Esta questão refere-se à contradição estrutural entre o aumento do capital investido em tecnologia mais sofisticada na produção, e a consequente redução do capital investido em mão de obra, a qual é substituída por novas tecnologias, gerando menos postos de trabalho ou postos mais simplificados e mais baratos, mas que a longo prazo produzem uma queda tendencial nas taxas médias globais de lucro, que pode ser adiada se fatores contrariantes forem acionados, mas que não pode ser postergada para sempre.
Sobre isso veja aqui.
Neste contexto, as possibilidades da social democracia são reduzidas, pois os problemas que afetam a população são mais de natureza estrutural do que de governo. A social democracia está em baixa no mundo todo na medida em que aumenta a massa de decepcionados por ela não ter condições de cumprir satisfatoriamente seu programa, abrindo espaço para a radicalização das direitas.
O complicador é que a atuação da social democracia ajudou a conter os partidos de esquerda. Foi para isso que nasceu o PT – Partido dos Trabalhadores -, para mostrar o caminho do meio, por entre os extremos, o caminho da ponderação, que é sempre o espaço preferido da democracia liberal: o capital explora e o Estado tenta consertar. Ocorre que está cada vez mais difícil corrigir as crises recorrentes do capital.
Tendo ajudado a fagocitar a esquerda e cada vez mais com dificuldade para transitar pelo caminho do meio, à social-democracia está restando, agora, justificar sua continuidade pela necessidade de conter os partidos chamados de extrema-direita, ou melhor dizer, a direita radical, tentando uma frente com a direita centrista. Dessa forma, ela continua operando pelo fortalecimento do caminho do meio, agora não apenas para conter a esquerda que considera radical, mas também como tentativa de conter a direita radical.
No entanto, as ações que agora são necessárias para proteger os trabalhadores e ao mesmo tempo postergar as crises do capital estão além do que é possível para a social democracia. Trump não é um maluco com projetos mirabolantes: ele está pondo em prática uma estratégia de salvação.
A crise estrutural do capital acelerou o processo de esgotamento da social democracia e está favorecendo, pelo menos por aqui, uma direita centrista que opera entre a social democracia e o espantalho da direita radical. Eduardo Bolsonaro critica este novo centro chamando-o de “direita permitida” – operacionalizada na pessoa de Tarcísio, governador de São Paulo, por exemplo -, em contraposição à direita radical bolsonarista.
Talvez a direita seja quem tem, hoje, consciente ou inconscientemente, uma noção mais clara das razões da crise atual e, consequentemente, da necessidade de caminhar para uma “nova” ordem mundial que, na visão deles, tente salvar o futuro do capital radicalizando seu programa.
Para o colunista Roberto Campos Neto, por exemplo, uma certeza emerge da situação atual:
“o debate fiscal ganhará centralidade, e o modelo de Estado assistencialista em seu formato extremo terá que ser repensado. Será necessário equilibrar as demandas sociais com equilíbrio fiscal. Sem uma estratégia para equilibrar a dívida global e promover políticas que expandam a oferta e elevem a produtividade, caminhamos para uma crise global da dívida.”
Leia mais aqui.
Ou seja, temos uma dívida progressiva que segundo ele é devida ao assistencialismo “extremo”. E isso, para ele, é uma equação insustentável. Nas suas palavras, uma situação de “mais dívida, juros mais elevados, alta da desigualdade, maior necessidade de recursos e pouca capacidade de elevar impostos.”
Não vamos aqui, entrar em um debate econômico de como “consertar o capitalismo”, pois não acreditamos nisso. Ao longo do último século pelo menos dois grandes modelos econômicos tentaram resolver este problema no âmbito do capitalismo: o neoliberalismo e o keynesianismo. E pela conclusão de nosso colunista, vê-se que não houve grande sucesso.
Milhares de Institutos de Economia nas universidades tentam formar economistas e prepará-los para lidar com estes limites do capital. Tais limites, no entanto, são do capital e não de governos, portanto são estruturais, pois vivemos um uma ordem social baseada nas regras do capital. Não são limites deste ou daquele governo. E, sendo limites estruturais, só podem ser rolados para frente, enquanto se agravam.
Qual a solução da direita radical? Como formulou muito bem Quin Slobodian (2025), o capital tinha ao longo destas últimas décadas duas preocupações centrais: primeiro conter o socialismo como modelo de superação dos problemas do capital e segundo, conter o Estado em seu papel de compensar as desigualdades produzidas pelo capital.
Vencida a primeira tarefa na década de 1990, está concentrado na segunda: privatizar as atividades do Estado e colocar a meritocracia como explicação das diferenças sociais atribuindo-as a uma disposição fundamental que conduz as pessoas ao sucesso ou ao fracasso:
“As crises que se seguiram a 2008 criaram as condições para novas mutações do pensamento neoliberal – bem como para novos cismas. A chegada de mais de um milhão de refugiados à Europa no decorrer de 2015 criou a oportunidade para um novo híbrido político vencedor que combinava xenofobia com valores de livre mercado. A nova diretiva que elabora sobre raça, cultura e nação veio a ser a cepa mais recente de uma filosofia pró-mercado baseada não na ideia de que somos todos iguais, mas que somos de uma forma fundamental – e, talvez, de forma permanente –, diferentes (Slobodian, 2025).
Isso implica em um upgrade do neoliberalismo especialmente na forma como foi aplicado pelos governos de Clinton e Obama nos Estados Unidos e Blair na Inglaterra, caminhando para a desresponsabilização da sociedade pela inclusão social via Estado. Pode-se dizer que a social democracia ajudou a cumprir a primeira tarefa e acabou sendo vítima da segunda.
Nas próximas eleições, vamos assistir como será configurado o programa de governo desta “direita permitida” que terá que transitar entre a social-democracia e a direita radical. Tudo isso dentro do contexto de agravamento da crise estrutural do capital e de uma eventual crise da hegemonia americana vigente nos últimos 80 anos (e suas guerras).
Mas certamente, ele incluirá um programa de médio e longo prazo destinado a viabilizar a privatização do Estado com desativação de serviços educacionais existentes, colocando a escola pública em linha de extinção pelo redirecionamento dos recursos orçamentários existentes para vouchers educacionais, de forma a favorecer sua realização através de agentes seguros; envolverá a ampliação do ensino domiciliar pago por vouchers, sob tutela dos pais; e o controle dos valores veiculados na sociedade para ajustá-los ao seu ideário.
Um programa deste tipo é o que está sendo desenvolvido neste momento pelo ditador Trump nos Estados Unidos e pode ser lido aqui. Ainda que possa começar mais brando por aqui, sua configuração final será a mesma.
A esquerda precisa se diferenciar e colocar-se como alternativa de futuro, apontando as causas mais profundas dos problemas que atormentam a população: o próprio capital e seu desejo pelo lucro infinito que esgota a natureza e os seres vivos – mesmo que isso não dê tantos votos agora. Devemos apoiar todas as frentes progressistas, mas preservar um programa diferenciado que nos prepare para enfrentar a barbárie que está em curso.
Se os valores da meritocracia, do individualismo, empreendedorismo e busca pelo lucro infinito, premiação do melhor, descarte dos “fracassados” moldarem os valores educacionais, eles irão definir também as finalidades da educação, seus objetivos e a própria organização do trabalho pedagógico da escola.
Pingback: CADERNO PEDAGÓGICO – Gepa Educação