Priscila Cruz, do Todos pela Educação, não aceita as escolas cívico-militares como solução e examina as razões delas aparecerem como escolas eficazes:
“Com efeito, o que mais explica os resultados das escolas militares são os fatores extraescolares. Algumas delas selecionam estudantes por meio de provas, como num vestibular, e assim têm a tarefa de ensinar para quem já tem aprendizagem acima da média. Mas o que mais explica o Ideb maior é o nível socioeconômico médio dos alunos, que são em maioria de famílias de classe média ou média alta, bem diferente da média nas escolas regulares.”
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Também identifica o motivo correto pelos quais os pais se resignam ao modelo:
“Pode ser então que a justificativa seja apenas mais segurança. É inegável o fator “disciplina” nessas escolas, e justo que as famílias desejem um ambiente seguro aos seus filhos. Mas o preço é o senso de repressão e da supressão da individualidade dos alunos.”
Não só forma a individualidade do aluno, mas também fornece um modelo de sociedade. As escolas cívico-militares não são um assunto técnico. São uma questão política. Elas representam a forma como o sistema atual reage às crises estruturais pelas quais ele passa, ante a revolta pelo fracasso das promessas do liberalismo pragmático, centrista, que entre nós se manifestou na social-democracia dos últimos 20 anos.
De fato, o que pesa na escolha dos pais é a segurança imediata dos seus filhos, imersos em uma sociedade que não lhes garantiu igualdade real e democracia suficiente. As escolas cívico-militares representam a perda de confiança na democracia liberal e a preparação da juventude para uma sociedade meritocrática e autoritária, onde cada um tem apenas a si mesmo como referência.
Mas não deixa de ser interessante ver os liberais responderem às escolas cívico-militares, pois os liberais têm uma dificuldade enorme em reconhecer “fatores extraescolares” limitadores do desempenho do aluno e, jamais os reconhecem como limitadores do trabalho do professor – ainda que, como Priscila, os reconheçam como fator explicativo dos maiores desempenhos obtidos pelos alunos.
Isso se deve a que os liberais brasileiros acham que a “educação” é a mãe de todos os outros direitos e que a escola é a responsável por garantir o “direito à educação”. Enquanto pôde, negou a própria escola. Confrontada, cedeu, mas tratou de redefinir a “boa educação” como “sair-se bem no IDEB”, o que entende que assegura aos alunos as oportunidades – ainda que estes devam batalhar por elas na escola e na vida. O direito à educação tornou-se direito a uma oportunidade abstrata, e não mais que isso.
Estas ideias foram amplificadas a partir da revolução francesa (1789), a qual é a mãe do liberalismo centrista (em oposição ao liberalismo radical). Desde lá, o mundo liberal promete progresso para todos os esforçados.
No entanto, bastaram avanços tímidos, retirados das elites a duras penas pelas lutas populares, para que logo se considerasse que o Estado do bem-estar social e a própria democracia liberal eram inapropriados. Essa erosão começou no dia seguinte da revolução francesa quando o conceito de “cidadania” começou a ser redefinido para limitar a participação do povo. Amplificou-se depois de 1970 quando o capitalismo entrou em uma fase de crises estruturais.
É exatamente este modelo de filosofia social liberal que fracassou ao longo dos últimos 200 anos. Não agradou nem ao andar de cima e nem ao de baixo. Lula fez o que pode. Quanto ao andar de cima, preferiu recuperar as teses do liberalismo radical (neoliberalismo), aquele que estipula que cada um tem que se virar por si mesmo sem o Estado, pois ficou caro manter o Estado do bem-estar social e os impostos subiram. Quando ao andar de baixo, nunca viu as promessas de um efetivo bem-estar chegar e tudo não passou de uma “oportunidade” não concretizada para a maioria. Em meio às crises, restou retomar o liberalismo radical (neoliberal). Esta é a raiz da crise da democracia liberal centrista que, agora, os liberais brasileiros querem retomar, para que tudo continue como antes.
Pode ser até que se consiga reverter o estado atual. Devemos até mesmo desejar que pelo menos se consiga isso, ante o desmonte do Estado e da Nação. Mas é claro que só isso não nos levará muito longe.
Ocorre que os liberais brasileiros querem fazer um “upgrade” num sistema falido e combinar propostas antagônicas: querem o neoliberalismo (liberalismo radical) e suas reformas econômicas, mas também querem a democracia liberal centrista dos direitos, que ameniza os conflitos. Não perceberam, ainda, que a democracia liberal dos direitos é incompatível com o liberalismo radical meritocrático. Se voltarmos ao liberalismo centrista, isso deverá ser para superá-lo em direção a uma democracia muito mais radical e muito mais igualitária – e não para permanecermos nele. Sem isso, seremos devolvidos, no futuro, ao mesmo estágio da crise atual.
O neoliberalismo além de não resolver as crises do sistema, também não convive mais com a democracia liberal e demonstrou estar disposto a abrir mão dela toda vez que estiver em jogo as teses neoliberais do livre mercado. Eis porque se dão muito bem com os conservadores autoritários.
Os liberais centristas brasileiros copiaram toda sorte de receitas neoliberais para a reforma empresarial da educação (BNCCs, testes censitários, responsabilização etc.) e de quebra, também as habilidades sócio-emocionais que eles acham que promovem a “cidadania”. Acreditavam que, com isso, estariam “garantindo direitos”. Não viram que tais receitas foram criadas, lá fora, no âmbito do liberalismo radical americano e inglês, que agora nos está destruindo. Sem visibilidade, querem combinar tais receitas com a antiga democracia liberal. Querem as reformas econômicas neoliberais que desestabilizam o crescimento econômico e a distribuição de renda, implantam uma geocultura meritocrática e impedem (pela destruição das políticas sociais) que o Estado possa realizar o papel de promotor da igualdade (até mesmo de oportunidades), mas querem preservar a “cidadania” da democracia liberal a “custo zero”.
É hora de irmos para outro patamar de democracia e igualdade. É hora de pensarmos a escola sob uma nova forma e conteúdo – como indutora de formas superiores de democracia e igualdade. O andar de baixo está cansado de falsas promessas e começa a aderir ao autoritarismo.
A partir de outras finalidades para a educação, que não seja “ganhar dinheiro para, ganhar mais dinheiro, indefinidamente”, temos que pensar e configurar uma nova escola para a juventude, juntamente com a tarefa de lutar para resguardar o frágil nível de democracia e igualdade já conquistado.
É hora de radicalidade, se queremos dar uma opção histórica de caráter popular, que evite a construção da opção autoritária que está em curso pelas elites. É hora dos liberais centristas mostrarem que, de fato, estão compromissados com mais democracia e mais igualdade. Isso começa por rejeitar a reforma empresarial e meritocrática da educação proposta pelos neoliberais.