Não há base para discutir a base

Em agosto de 2014, Maria Alice Setubal elencava as condições para que se construísse uma base nacional curricular comum até agosto de 2016. Dois anos antes portanto. Estes pontos incluíam:

  1. Uma parte complementar para levar em conta os contextos locais e articular o projeto de sociedade às aspirações e especificidades regionais.
  2. Definição de objetivos de aprendizagem claros.
  3. Articulação com a política de formação de professores.
  4. Expressar um projeto de sociedade mais justo, sendo fundamental que sua construção envolva uma ampla participação social, garantindo consulta, debate, formulação e validação.

Note-se que “projeto de sociedade” aparece duas vezes: no item 1 e no 2. Definição de objetivos é um dos elos de formulação da base. Já podemos notar que estes dois pontos foram abordados na proposta da base atual feita pela SEB/MEC de forma inadequada. Não existe projeto de sociedade ou de nação minimamente pautado e a base restringiu-se apenas e tão somente a uma lista de objetivos destinados a serem convertidos em matriz de referência para a avaliação (já previamente numerados).

Quanto ao item quatro, a participação, a sociedade terá dois meses para debater a proposta. O processo foi reduzido a homologação a posteriori. Este tempo poderia ser suficiente se, antes, tivesse havido alguma participação fora do gabinete do Secretário. Mas não foi assim. A base proposta foi feita em gabinete com 116 pessoas distribuídas em grupos de técnicos. Agora vem para debate que deve durar míseros dois meses. Sabe-se que os articuladores dos debates são membros ligados aos próprios agentes gestores dos sistemas de ensino. Em mais de um estado, não haverá debate propriamente dito, mas sim homologação.

Maria Alice elencou quase todas as condições para que o país chegasse a um consenso sobre a base nacional comum de suas escolas. Hoje ela volta à Folha para abordar a questão da BNC e chama a atenção para a necessidade de se debater a proposta. Novamente o que ela propõe é o que deveria ser feito mesmo. Mas seu texto não aponta para a questão das condições nas quais a proposta da SEB foi elaborada.

Onde esteve o erro do MEC, então?

Um processo complexo, de alcance nacional e que envolve variados posicionamentos exige que o condutor principal deste processo tenha credibilidade técnica e política, principalmente política já que tecnicamente pode ser assessorado, para conduzir este processo em nível nacional. Aqui houve a falha principal, motivada pelo conturbado momento político nacional.

O Secretário da Educação Básica do MEC era peça fundamental neste processo. Era fundamental que fosse pessoa da área de currículo ou com uma visão mais ampla de educação. No entanto, Cid Gomes preferiu colocar lá alguém que pensava como ele e que garantisse a condução do processo dentro dos princípios dos reformadores empresariais da educação. Por ocasião de sua indicação Palácios disse:

“Ligado à Faculdade de Educação, Manuel lembra que sua atuação no Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (Caed) da UFJF, onde atua desde sua fundação e já ocupou cargo de coordenação, foi importante para a escolha. “O Caed tem abrangência nacional e foi como governador do Ceará que o ministro Cid Gomes teve conhecimento de nosso trabalho.”
O novo secretário é graduado formado em Engenharia de Telecomunicações pelo Instituto Militar de Engenharia (IME), com mestrado e doutorado em Ciências Sociais pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio (IUPERJ). Recentemente, ele foi orientador de mestrado da atual vice-governadora do Ceará, Izolda Cela (Pros), que, à época, era secretária de Educação do Ceará, então governado pelo atual ministro Cid Gomes.”

Izolda foi, antes, Secretária de Educação em Sobral, cidade que os reformadores tentam emplacar como referência em mudança educacional. Manuel Palácios, o Secretário da SEB que conduz o processo, vem deste campo. Atua na área de forma profissional com um grupo que presta assessoria dentro da “filosofia” dos reformadores empresariais da educação, em processos de elaboração de avaliação de larga escala, onde o ponto de referência é sempre o objetivo a ser atingido. Natural, portanto, que, para ele, uma base nacional fosse um elenco de objetivos de conteúdos a serem avaliados. A portaria que nomeia o grupo é clara:

“Auxiliar tecnicamente a  Secretaria  de Educação  Básica  durante  a  discussão pública  da proposta de Base Nacional Comum Curricular que será realizada nas unidades da federação sob a coordenação das secretarias de educação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, bem como com as associações científicas e profissionais que atuam nas áreas de  conhecimento  da  Educação Básica.” (Grifos meus.)

A opção é clara: mobilizar o estamento burocrático das Secretarias e chamar apenas as entidades que atuam nas áreas de conhecimento da educação básica. A discussão nasce focada no ensino.

Colocar a formulação da base nacional nas mãos de um reformador, levou a que ela fosse produzida, já na sua concepção inicial, de forma equivocada para a visão daqueles educadores profissionais que não comungam com a forma de ver dos reformadores. Isso faz com que a proposta não tenha legitimidade entre muitos dos educadores profissionais e muito provavelmente não terá também entre os professores nos sistemas de ensino que já têm formação suficiente para perceber a inadequação da proposta original.

Qual o agravante?

Não há como em dois meses de discussão corrigir algo que nasceu errado conceitualmente. Não se trata de corrigir a redação dada ao objetivo um ou dois de uma disciplina. Não há inclusive o dinheiro que o MEC teve para manter 116 pessoas escrevendo algo que convencionaram ao final chamar de base nacional comum. Portanto, o documento é incorrigível porque nasce conceitualmente errado. Teria que ser refeito dentro de outro processo de elaboração. E isso não é possível de ser realizado em dois ou três meses. O desenho é de homologação e não de debate aberto. O debate é apenas um detalhe na formulação.

Fizeram algo inaceitável e agora jogam a responsabilidade nos outros, por não apresentarem alternativa em dois meses, numa tentativa de isentar-se da responsabilidade sobre a proposta inicial e aprovar o documento por decurso de prazo. Note-se que não se trata de corrigir isto ou aquilo na base proposta. É estrutural o erro.

Para Manuel Palácios, ele não estava lidando com a elaboração de uma base curricular, com a elaboração de um “currículo nacional” e sim definindo o “ensino”. Esta foi a resposta que deu a uma importante associação da área quanto esta lhe disse que faltava na equipe dele profissionais que entendessem de currículo. Indagado porque não tinha especialistas em currículo envolvidos na elaboração da base, ele foi claro: “não tem porque não se trata de currículo, se trata de ensino”. Que mais pode-se dizer? Está claro o equívoco na partida.

Outra questão: a discussão de um projeto de sociedade mais justo a que se refere Maria Alice não faz parte do ideário dos reformadores como elemento da formulação educacional, pois eles entendem que a educação é uma questão só técnica e não política ou como eles diriam, “essa história de projeto é ideologia”.

Há uma discussão mais fácil do que essa e que os reformadores se negam a fazer no mundo todo onde estão presentes: o que entendemos por uma boa educação? Para eles é tirar nota boa no teste e a escola ter média alta. E ponto. Isso, é claro, não é suficiente para os educadores.

Fizeram uma listagem de conteúdos que não tem como ser corrigida em dois meses. E a ideia é essa mesma: é não ter muita alteração, é passar logo. Olhando a produção, nos lembramos de Benjamin Bloom e sua taxionomia dos objetivos educacionais – e eu diria – piorada, em relação à sua proposta nos anos 60.

Este foi o erro da base. Houve um erro de formatação de processo que começou com Cid Gomes, Janine não teve como corrigir (Manuel Palácio é cota de Cid Gomes) e Mercadante já anunciou que vai manter (ele foi avalista da indicação à época).

Na realidade, a pane foi técnica e política. A relação de Manuel Palácio com as principais entidades educacionais da área é péssima. Não tenho notícia de que alguém na SEB como Secretário possa ter tido tanta autonomia para ser desrespeitoso com as entidades. Sobre isso já escrevi aqui. Recentemente, convidado para a Reunião da Anped, mandou dizer que não iria. Não quer debater. Como alguém pode conduzir um processo de vital importância como este, de costas para as principais entidades educacionais? Seus compromissos são outros.

Portanto, Maria Alice Setubal, do ponto de vista processual está correta, mas infelizmente, as condições políticas de elaboração da base não foram cuidadas. E sem isso, não se liberam forças construtivas que mobilizem as redes de ensino para o debate e para enfrentar os problemas clássicos da nossa política educacional. Sem esse chamamento, a base tende a ser apenas mais um instrumento técnico padronizador. Padronizará as avaliações, a formação de professor e a produção de material didático. Mais do mesmo que já não funcionou. Faltou principalmente a condução política que teria levado a uma concepção mais abrangente e de melhor técnica para o processo. Faltou ouvir antes.

Agora, simplesmente, não há base para discutir a base.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
Esse post foi publicado em Avaliação de professores, Links para pesquisas, Mercadante no Ministério, Responsabilização/accountability e marcado , . Guardar link permanente.

7 respostas para Não há base para discutir a base

  1. Tamara Cardoso André disse:

    Não foi o Centro de Alfabetizaçãó, Leitura e Escrita (CEALE) que coordendou a escrita do documento?

  2. Sim. Mas ainda é um atividade interna, restrita a um grupo. Isso não pode ser considerado debate ampliado. Nunca ficou claro o que significa esta “coordenação”.

    • Tamara Cardoso André disse:

      O CEALE é um grupo fechado, governista e corporativista. A ANPED, sempre tem apoiado e abrigado o CEALE. Por isso não acho que a ANPED tenha legitimidade para criticar a proposta da BNC simplesmente se retirando do debate. A proposta de alfabetização da BNC é muito ruim, o que é grave em um país de dimensão continental e com tanta variedade linguística como o Brasil. Nas entrelinhas, a BNC prevê a inclusão de surdos na escola regular desde a educação infantil, numa interpretação “sem vergonha” do que é bilinguismo na educação de surdos. Os impactos disso para a alfabetização das crianças pobres poderão ser muito ruins. A ANPED, assim como muitos pesquisadores em educação no Brasil, subestimam a importância que estes documentos curriculares assumem no interior das escolas, assim como subestimam a importância de discutir os conteúdos de ensino. A ANPED chegou a publicar nota de apoio ao PACTO pela alfabetização na idade certa. Só que este PACTO nada mais é do que definir que a alfabetização ocorrerá em três anos e que será medida por avaliações em larga escala. As avaliações da alfabetização (ANA, PROVA E PROVINHA BRASIL) não avaliam escrita, e leitura, apenas de palavras e frases. Ou seja, o PACTO é para mal alfabetizar em três anos e maximizar índices. Nosso currículo está cada vez mais reduzido. As avaliações em larga escala são apenas instrumentos que hoje são usados para reduzir conteúdos e amanhã serão usados para fechar escolas (como tem ocorrido nos EUA). Há uma abolição do ensino de gramática na BNC. A proposta de alfabetização é reducionista e fraca. Isso precisa ser apontado sim. Simplesmente a ANPED se retirar do debate e deixar este documento assumir o papel de currículo no Brasil sem nenhuma crítica aos seus conteúdos, é uma covardia. Temos que inundar aquele site de críticas aos conteúdos da BNC.

  3. Yolanda Santos Rocha disse:

    Já fui Professora concursada de ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EJA,. em Salvador-Ba, durante (13)anos e meio, sei bem como funcionam todos estes órgãos. Lecionei na mesma Escola Municipal. Inconformada com tanta burocracia e dificuldades para exercer com dignidade a profissão que eu escolhi… Abandonei o Cargo em maio de 2005. Passei a cuidar da minha saúde, se estou viva hoje devo à esta minha atitude de sair do Sistema Público… Onde eu constantemente perdia a voz… A pressão subia… Meu marido levava-me direto ao hospital… Era uma crise atrás da outra… Que alívio sinto hoje dirigindo o meu próprio empreendimento, onde conto com os membros da minha família e uma comunidade que confia em nossa equipe.
    TRABALHAMOS: DOS PRIMEIROS PASSOS AOS PRIMEIROS LUGARES…

  4. M. Estela S. Betini disse:

    A questão é sempre a mesma, os docentes não são chamados para o diálogo, eles são excluídos do debate. A vice- ministra da Educação de Ontário, segundo a Folha de S. Paulo, 05/09/2015, diz que a união entre sindicato, diretores, docentes e governo fez o nível educacional subir nessa província canadense. Conta um pouco do histórico, em 1990 o governo adotou uma política de cima para baixo, fixando padrões para as escolas, mas não houve os resultados esperados. Em 2003 implantou-se a nova política de participação do sindicato dos docentes, docentes, diretores e governo, os resultados esperados surgiram. Sejam quais forem os objetivos educacionais anunciados esta prática de determinar de cima para baixo leva ao fracasso, é uma lição histórica que muitos tem insistido em ignorar. Até quando?

    • giselawajskop disse:

      M. Estela S. Betini. É impressionante como o consenso da sociedade civil em torno da educação de qualidade funciona em Ontário. Morei em Toronto no ano passado com minha família como Visiting Scholar da University of Toronto, desenvolvendo trabalhos de investigação por meio de observação e estágio nos cursos de formação de professores, em creches, Kindergarten e escolas e a realidade é impressionante. Um dos lemas da educação em Ontario é que a população confie nas escolas e em seus professores. Chegaremos lá? As Fundações e Institutos jamais atyam diretamente nas escolas, apenas financiam pesquisas detreminadas pelas Universidades….

  5. giselawajskop disse:

    Artigo excelente! Parabéns e obrigada por compartilhar Luis Carlos de Freitas. Eu complementaria afirmando que faltou ouvir antes não apenas os especialistas em currículo (pessoas e associações) comprometidos com a equidade nos processos de inclusão de TODAS as crianças, jovens e adultos brasileiros nas culturas letradas, nas Ciências e nas Artes, mas, também, OUVIR e debater sobre o que a sociedade civil não especializada mas usuária das escolas pensa sobre tudo isso. Familiares e estudantes tem muito a dizer dessa escola empobrecida que as elites tecnicistas tem lhe oferecido em forma de ensino de 5a categoria! A experiência dos EUA que vem fechando escolas e expulsando as populações iletradas do “ensino” é amedrontador!

Deixe uma resposta para giselawajskop Cancelar resposta

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s