O Ceará (em especial Sobral) tem sido declarado modelo de política pública educacional a ser implementado pelo país afora. De fato, mais de 50 municípios já tentam imitá-lo angariando para tal recursos de fundações e institutos privados. Estudos aprofundados do que acontece naquele estado começam a ganhar volume e a mostrar a que preço na formação das crianças cearenses estes altos índices numéricos têm sido obtidos.
Temos defendido que as políticas de accountability (responsabilização) atuam tanto no plano material (privatização e destruição da escola pública) como no plano da formação cultural dos estudantes, professores e gestores, neste caso, pela difusão de uma geocultura meritocrática que “ensina” principalmente a juventude a inserir-se na concorrência e a justificar seus avanços exclusivamente pelo mérito individual.
Um sentimento meritocrático vai tomando conta das crianças desde o início de sua formação e começa a ser o parâmetro de julgamento e justificação que diferencia quem tem direito a ter direito (pelo mérito) e quem não tem. A própria estrutura de classes sociais começa a ser justificada pela posse do mérito, transmutando as complexas desigualdades sociais, reduzidas, agora, a simples desigualdades de mérito. E este sentimento construído ao longo de todo o processo educativo, contribui posteriormente para explicar também quem está incluído e quem não está incluído no acesso aos direitos sociais e políticos.
Constrói-se um ataque direto ao conceito de “cidadania” construído no âmbito da democracia liberal, cuja responsabilidade cabe ao Estado apoiar como garantidor de uma sociedade mais igualitária – mesmo nos limites do liberalismo. Este sentimento cria terreno fértil para o pensamento anti-estatal, contrário ao desenvolvimento de políticas sociais igualitárias e, ao mesmo tempo, abre caminho para o desenvolvimento do pensamento individualista, um liberalismo radical que se expressa politicamente na extrema-direita e no populismo autoritário.
Um estudo que foi concluído em 2020, de Karlane Holanda Araújo, ajuda a desvendar como estas relações começam a se estabelecer a partir de uma política de responsabilização (accountability) desde os anos iniciais no Ceará.
A autora concluiu tese de doutorado na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará examinando “O PRÊMIO ESCOLA NOTA DEZ E SUAS IMPLICAÇÕES À SUBJETIVIDADE DAS CRIANÇAS DO 2º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO DO CEARÁ”, sob orientação do Prof. Raimundo Helio Leite e coorientação da Profa. Clarice Zientarski.
O resumo do trabalho detalha a metodologia:
“O presente estudo objetivou analisar os efeitos da política accountability escolar representada pelo Prêmio Escola Nota Dez, efeitos esses produzidos na subjetividade das crianças do 2º ano do ensino fundamental do estado do Ceará. Para esta versão da pesquisa, mapearam-se as repercussões desse evento em cinco municípios distribuídos nas Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação, situadas nos polos: norte (Coordenadoria Regional 3 – Morrinhos), sul (Coordenadoria Regional 18 – Nova Olinda), leste (Coordenadoria Regional 10 – Fortim), oeste (Coordenadoria Regional 13 – Novo Oriente) e centro (Coordenadoria Regional 12 – Quixeramobim) do Ceará.
Em cada uma dessas coordenadorias, selecionaram-se os municípios que obtiveram o maior número de escolas agraciadas com o Prêmio Escola Nota Dez em 2014 e 2015. Posteriormente se extraíram as escolas com os melhores desempenhos em cada uma dessas cidades. Para a coleta dos dados, aplicou-se a técnica de entrevista semiestruturada com os professores polivalentes do 2º ano, como também se empregou a entrevista grupal com as crianças da série pesquisada.”
E prossegue elencando as conclusões:
“Ao final da pesquisa, constatou-se que a cultura produtivista e de reconhecimento do mérito da política accountability escolar, representada pelo Prêmio Escola Nota Dez, reverbera na ação educativa, de modo que a escola e sua equipe escolar, durante todo o ano letivo, empreendem esforços (sermão da recompensa e controles aversivos) com o propósito de instruírem o aluno para alcançar a performance de excelência (standard student) explicitada nos descritores do Spaece-Alfa e, por efeito, serem reconhecidas e agraciadas com a premiação em dinheiro.
Nessa perspectiva, a criança que se encontra em fase de formação e constituição de sua subjetividade e identidade é reduzida à posição de “objeto” passivo, estimulada a se acomodar ao processo de ensino-aprendizagem e pressionada a responder à demanda da “eficácia escolar”. Nesse sentido, o Prêmio Escola Nota Dez reforça práticas pedagógicas à luz da lógica do capital, práticas essas socialmente valorizadas, produzindo efeitos na subjetivação dos valores, das condutas e dos laços sociais das crianças das escolas de alto rendimento do ensino fundamental (2º ano) do estado do Ceará.
Diante desse achado, considera-se que a formação dessas crianças não irá melhorar caso se continue a focar apenas a leitura e a matemática nos testes como um meio de decidir o destino dos estudantes, professores, diretores e escolas, enquanto se ignorarem os outros estudos que são elementos essenciais de uma boa educação. É preciso romper o circuito de anseios mercadológicos.
Para isso, são urgentes: a meta-avaliação do programa e a adoção de uma nova proposta de política educacional que venha a priorizar os valores humanísticos constituídos nas relações sociais dentro do ambiente escolar, bem como o desenvolvimento integral da criança.”
Baixe o texto aqui.
Vale a pena destacar um trecho das conclusões que identifica a ação destas políticas na conformação da subjetividade meritocrática das crianças:
“Nessa prospecção, essas escolas que se rendem a essa face obscura da política de responsabilização e correm em busca de altos resultados a qualquer custo tendem, por um lado, a reprimir os desejos e as necessidades próprios da infância, subjugando-se à lógica mercantilista, produtivista e recompensadora; por outro lado, colocam em risco todo o processo de ensino-aprendizagem das crianças, desprezando seu desenvolvimento metacognitivo e socioafetivo e degradando os valores humanísticos constituídos nas relações sociais dentro do ambiente escolar. A criança passa a ser alvo da missão aluno nota dez, visto que seu desempenho na prova do Spaece-Alfa é tributo para ganhar status, menção honrosa e premiação financeira, capitalizando, assim, a relação entre professor e aluno.
As crianças são monitoradas quanto ao seu desempenho nas proficiências do Spaece-Alfa através de formulários e quadros expostos nas paredes das salas de aula. Os quadros dos alunos nota dez servem de vitrine midiática para a comunidade escolar no sentido de apresentar ao público local o tipo de discente que se quer ter, ou seja, o modelo de aluno objetivado no contexto das escolas de alto rendimento.
As crianças do 2º ano do ensino fundamental que se destacam, que leem com fluência e atendem satisfatoriamente às proficiências exigidas nas áreas de Português e Matemática são protagonistas de uma história forjada pela maquinaria do poder, já as crianças que não estão localizadas na escala de proficiência verde-escura nos quadros de ranqueamento das escolas nota dez de ensino fundamental (séries iniciais) do Ceará correm o risco de ser estigmatizadas e marginalizadas. A exposição classificatória dos resultados de desempenho educacional acarreta tensões no cotidiano da sala de aula, gerando, muitas vezes, bullying entre os colegas da turma, descontentamento, desinteresse, acirramento de competições, individualismo e uma série de sentimentos que pode ocasionar baixa autoestima no educando.
Em outro fluxo, vamos ter o ideário do Estado, objetivado pelo professor, rendendo-lhe bônus financeiro, status e ego inflado. A exclusão e a marginalização da criança com déficit nos resultados de desempenho, provenientes do frisson avaliativo e da expectativa pelas melhores posições na premiação escolar, passam despercebidas e sem importância no processo educativo.” (p. 254/255)
Prezado prof Freitas, saudações!
Sinto-me honrada com a presente publicação na qual o Sr. faz referência a minha tese de doutoramento. Fazer pesquisa no cenário atual é tarefa desafiadora, principalmente quando nos deparamos com interesses políticos que enfatizam dados e percentuais quantitativos de desempenho escolar a qualquer custo, passando por cima de princípios éticos e morais.
Penso que minha tese extrapola o objetivo de ser um estudo acadêmico para fins de titulação, pois toca em um ponto obscuro da política de avaliação do Ceará denunciando como o modelo accountability enviesa o processo de ensino e aprendizagem alicerçado sobre o mantra da meritocracia.
Inclusive, gostaria de ressaltar que há um dispositivo normativo que deduz do cálculo da avaliação o desempenho dos estudantes deficientes, gerando um estado de “exclusão interna” ao sistema escolar.As crianças que possuem algum tipo de deficiência realizam a prova do Spaece, mas seus resultados não são contabilizados.A Portaria de nº 998 promove a exclusão da educação especial dos resultados provenientes das avaliações do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (Spaece). Conforme atesta o artigo escrito por nós a seguir: http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/6824
Agradeço a menção e faço votos de novas interlocuções.
Cordialmente,
Profa Karlane Holanda ( Karlane.araujo@ifce.edu.br)
Parabéns pelo trabalho. A função da academia é revelar os limites e consequências destas políticas. Uma forma importante de se resistir a elas. E como você mostra neste comentário, ela não tem limites. Abraço. Luiz
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Excelente. Parabéns à Karlane. Já tinha lido sua dissertação, agora lerei a tese. De fato, o que tem acontecido no Ceará é de uma violência sem tamanho, são punições, visíveis e invisíveis (estas últimas ocasionadas por regras injustas que só trazem perdas e consequências às escolas) fora os constrangimentos… esses já conhecemos da literatura internacional e nacional. Municípios que se especializaram em receber o Prêmio do governo estadual (há caso de escolas que já somam mais de R$ 1 milhão em bônus nos últimos 10 anos). Sem contar o rateio do ICMS, associado à avaliação estadual. Os municípios entraram na lógica do controle e da cultura de avaliação, orientados pelo governo estadual. Aqui, a coordenação federativa confunde-se com o Estado-avaliador.
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