Compreende-se, dessa forma, porque os defensores do liberalismo econômico, ao separá-lo da noção de democracia, abrem mão desta, em nome de garantir o que conceituam como “liberdade”, legitimando golpes militares e/ou jurídico-parlamentares-institucionais. A democracia supõe uma interpretação ética de seu regramento, que foi substituída pela conveniência ideológica da direita – uma espécie de “guerra santa”. Bolsonaro é desdobramento do golpe de 2016, legitimado nas eleições de 2018 – ainda que pairem dúvidas sobre os métodos que utilizou – este é um peso morto que terá que carregar.
A “nova direita” radical avançou para um entendimento que seria considerado, até pouco tempo, desprovido de ética: os fins justificam os meios, independentemente de quais sejam estes. E talvez seja exatamente esta a sua característica atual marcante: não importam os meios quando se trata de defender o livre mercado que, segundo eles, funda a liberdade pessoal e social. E se é para tal, a subjetividade neoliberal fica em paz com golpes de estado e golpes institucionais, “fakes” e similares.
Compreende-se, também, porque a violência política está colocada na ordem do dia como forma de barrar as teses de qualquer movimento que envolva minimamente algum tipo de planejamento econômico com algum papel relevante do Estado. O Estado é visto como alguém que atrapalha a liberdade individual de competir, ao olhar para o bem-estar do coletivo.
Essa forma de pensar atingirá todos os setores do Estado e também a educação, gerando privatização, padronização, denuncismo, controle disciplinar etc. Como já dissemos, a política educacional do bolsonarismo tem por base o liberalismo econômico em articulação com o conservadorismo, com o autoritarismo. Espraia-se por vários espaços: políticos nos Congressos Nacionais e nas Assembleias, nos novos partidos políticos, em membros do Judiciário e outros órgãos de controle, na mídia, fortalecendo a lógica de que, frente à agressão ao livre mercado (base da “liberdade”), justifica-se a “legítima defesa”, reiterando-se que os meios justificam os fins.
Não que este pensamento seja exatamente uma surpresa, pois, neste sentido, não há diferença alguma entre o golpe militar ocorrido em 1964 e o golpe jurídico-parlamentar de 2016, em que pesem as condições econômicas e os meios utilizados pela “velha direita” terem sido diferentes. Provavelmente o que choca é a defesa explícita e aberta destas teses de maneira organizada e militante, formando uma frente jurídica, parlamentar e midiática em defesa delas e que não hesita em fazer uso de recursos jurídicos ilícitos (“lawfare”) contra quem considere ser seu inimigo. A insegurança jurídica torna-se mecanismo de censura e ameaça difusa (apoiada no denuncismo), perpassando toda a sociedade, em um processo crescente de “judicialização” da vida social, em substituição à própria política.
Além do “lawfare”, a atuação destas forças inclui: limitar ou dificultar o voto do cidadão, ou pelo seu oposto, facilitar para que o cidadão não se manifeste nas eleições (voto não obrigatório, por exemplo); impedir os processos de organização social dos mais desfavorecidos; não transferir impostos para os menos favorecidos e barrar os processos de redistribuição de renda; destruir a organização dos trabalhadores, a atuação dos sindicatos e confederações; destruir a atuação e organização dos movimentos que lutam pelos direitos humanos; atuar contra os imigrantes e contra ações de preservação do meio ambiente; desregulamentar a atuação das corporações; privatizar tudo que for possível; propor formas de proteção constitucional quase que irrevogáveis, que evitem o impacto de eventuais decisões contrárias ao livre mercado, entre outras. Tudo isso em alto e bom som.[1]
Neste quadro, é compreensível que movimentos destinados a cercear a liberdade docente como o “Escola sem Partido” estejam simultaneamente presentes à implementação acelerada das reformas constitucionais e do Estado, após 2016, incluindo a reforma da educação, com autoria e financiamento empresarial[2]. Tais iniciativas têm uma mesma origem ideológica: o neoliberalismo, nos termos de J. Buchanan e de Hayek (2010) e Mises (2010) – uma verdadeira paranoia ideológica que enxerga “esquerdismo” e “comunismo” em tudo que cheire a defesa dos interesses populares pelo Estado, flertando com o “darwinismo social”.
E esta é uma razão que deveria ser suficiente para nos afastarmos destas concepções de sociedade (e de educação), mesmo que os resultados acadêmicos de suas políticas educacionais viessem a ser “eficazes”: tendo assumido tal darwinismo social no âmbito da sociedade, justificando-o pela sobrevivência do indivíduo mais forte na concorrência do livre mercado, quer agora levá-lo para as escolas e disputar a hegemonia na formação da juventude dentro de sua lógica. Para esta vertente, se o mundo é pautado pela concorrência, há que se preparar as crianças para “competir” nele, tal como ele é. Nenhuma perspectiva de humanização ou transformação social é agregada aos processos educativos, daí seu caráter reacionário e conservador.
É esta visão social que também está na base das “soluções” propostas pela engenharia da reforma empresarial na educação, ainda que esta seja um movimento híbrido politicamente. Na lógica de Friedman, pensando a escola como uma “empresa” no livre mercado educacional, as escolas de menor qualidade devem sucumbir às de maior qualidade, sendo fechadas; os estudantes de menor desempenho devem sucumbir aos de maior qualidade, sendo barrados em sucessivos testes; os professores de menor qualidade, devem sucumbir aos de maior qualidade, sendo demitidos.
No plano social, não é diferente: os desfavorecidos devem ser confrontados com sua condição ou perecer, pois não é justo que o “gangsterismo” do Estado, retirando dos mais ricos que honestamente enriqueceram, opere qualquer processo de redistribuição de renda: “devem ser tratados como animais que não têm independência” (J. G. Buchanan).
Nestas condições, a educação será sequestrada pelo empresariado para atender a seus objetivos de disputa ideológica e atender às suas necessidades práticas de acumulação. A educação, será vista como um “serviço” que se adquire e não mais como um direito. Do ponto de vista ideológico, a privatização também propiciará um maior controle político do aparato escolar, aliado às ações já promovidas de padronização pelas bases nacionais comuns curriculares e pela ação do movimento “escola sem partido”, este último, um braço político da “nova” direita na escola.
Neste sentido, as ações já tomadas no MEC, no período de governo pós golpe 2016, são compatíveis com a política educacional de Bolsonaro. A insuficiência, se houver, será em relação ao ritmo das reformas privatizantes (terceirização/vouchers), seu grau de autoritarismo e de conservadorismo moral.
A bibliografia citada nestes posts encontra-se na página Bibliografia, neste Blog.
Baixe aqui o Plano de Governo de Bolsonaro
Leia também de F. Bonadia: Desconstrução do programa do PSL para a educação brasileira.
[1] Não temos como considerar aqui outro fator que recai dramaticamente sobre a autonomia dos estados nacionais, oriundo da configuração da sua dívida pública, a qual os torna reféns do rentismo. Sobre isso ver Dowbor (2017).
[2] Avelar e Ball (2017) mapeiam o grau de influência do empresariado e suas organizações na definição da base nacional comum curricular da educação básica brasileira.
Triste panorama para o futuro das políticas educacionais nacionais.