BNC: o sequestro da semântica

As escolas particulares estão preocupadas com a aprovação da Base Nacional Comum. É o que aponta Paulo Saldaña, da Folha de São Paulo, em matéria de hoje (17-4-16). Não é difícil saber porque: têm receio que ela interfira em seus projetos que procuram ensinar muito mais do que uma “base”. São escolas voltadas para o ingresso na Universidade. Se a base nacional for um nivelamento por baixo, não poderão cumprir esta função de preparar para os exames de forma competitiva. Não querem restrições.

A base cobre 60% do que deve ser ensinado. As escolas podem adicionar outros 40%. Mas, elas sabem muito bem que o que interessa é o que cai nas provas nacionais, e estas estarão alinhadas aos 60% obrigatórios e não necessariamente aos 40% agregados pela escola. Niveladas “por baixo” nos exames, podem perder competitividade frente a outros alunos que tenham apenas o básico, de fato.

Contudo, a base só é “base” mesmo para a escola pública, que por condições operacionais acaba limitada a isso.

A Federação Nacional das Escolas Particulares quer que a base nacional em seu formato final seja definida pelo Congresso e não pelo Conselho Nacional de Educação como prevê o PNE. Entende-se porque: lá eles têm interlocutores mais fieis do que no CNE e podem ter maior influência na versão final. O representante da Federação teme que “se [a base] for direto para o CNE não teremos voz”.

Por outro lado, também na mesma edição da Folha, pode-se ler uma entrevista com Manuel Palácios, o Secretário de Educação Básica do MEC que cuida da produção da base. Nela ele opera o “sequestro da semântica”: para ele a base é só “uma norma para elaboração de currículos. Tanto escolas particulares e redes públicas têm o dever de produzir os próprios currículos com a norma nacional, com autonomia.” Palácios é versadíssimo em esvaziar a crítica pela sua incorporação na “semântica”. Certamente, a segunda versão da BNC mostrará isso.

De qual autonomia fala Palácios se os 60% obrigatórios do MEC são a base para a produção das avaliações nacionais? Não existe tal possibilidade. As escolas, na era da responsabilização vertical baseada em exames nacionais, estão ensinando para os testes (ANA, Prova Brasil, ENEM) – além dos sistemas de avaliação locais nos seus estados e municípios, que também serão alinhados aos 60%. A referência, no entanto, para as escolas particulares, são os exames de ingresso na Universidade feitos por estas mesmas: Fuvest, Unicamp etc. – além é claro do ENEM. Por isso, temem ficar limitadas a um “básico” obrigatório. As escolas particulares temem ser “equalizadas” a uma mesma base nacional das públicas.

Mas me parece que não é bem assim. Como os testes serão feitos na ótica da “seletividade”, as escolas particulares não devem se preocupar tanto com os exames nacionais do tipo ENEM, pois os elaboradores dos exames vão propor itens com graus de dificuldade diferenciados para os itens o que, certamente, favorecerá as escolas particulares que adicionarão ações de preparação para o exame na formação do aluno.

A base só será base, mesmo, para as escolas públicas que, neste sentido, entrarão em condições menos competitivas nos exames seletivos por se restringirem, na prática, à base nacional. Mas mesmo os alunos das escolas públicas vão ter também a plataforma “Hora do ENEM” onde ele poderá treinar para o teste, ainda que treinar não seja educar. Mas quem se preocupa com isso? A questão é passar nos exames e não aprender de fato.

A preocupação das escolas particulares só deve ser maior, no entanto, quando se trate de processos seletivos feitos pelas próprias universidades, fora do ENEM. Neste caso, cada instituição faz suas exigências que podem estar além dos 60% da base nacional comum.

A declaração de autonomia de Palácios é uma mera declaração de efeito. Se fosse verdadeira, o MEC teria seguido o outro estudo de base nacional que estava formulado dentro do MEC quando Palácios chegou por lá, ou teria se contentado com as Diretrizes Nacionais Curriculares que já existem, pois elas poderiam ser convertidas em um currículo em cada escola, da mesma forma.

Mas o que interessa à SEB é ter uma grande taxonomia de objetivos de ensino para orientar os exames nacionais, a formação de professores e a produção de sistemas de ensino mediados por meios eletrônicos e, além disso, “responsabilizar” o sistema público de ensino, alimentando, de quebra, um sem número de ONGs de consultoria para asse$$orar as escolas na adequação de seus currículos à base nacional e treinar os professores e gestores da escola nas suas novas exigências.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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