Aos poucos vai ficando claro como pensa, hoje, a nova direita brasileira: defende um “liberalismo” oportunista que fala em aceitar alguma liberdade nos costumes, mas não fala de inclusão social e propõe austeridade; é golpista se necessário e visa garantir, a qualquer preço, o livre mercado pleno e irrestrito. É uma combinação na qual se aceitam as teses econômicas neoliberais da destruição do Estado inclusivo, mas sem a lamentação dos conservadores sobre os costumes.
O que está em jogo é o rompimento do contrato social do liberalismo centrista (democracia liberal representativa) que esteve em voga nos últimos 150 anos (Wallerstein, 2002, 2013). A crise da democracia liberal não é outra senão a própria crise do sistema histórico capitalista que entrou em contradição mortal com a própria democracia liberal. No novo contrato social os trabalhadores foram excluídos, restando só a voracidade da acumulação crescente do capital: um “liberalismo” de uma nota só.
Antonio Prata em uma coluna bem humorada relembra o antigo contrato social centrista:
“Hobbes, Locke e Rousseau criaram algumas das bases sobre as quais foi construído o Estado de direito. A ideia fundamental é que se cada um não topar abrir mão de um pouco da sua liberdade, submetendo-se às leis, vivemos numa guerra de todos contra todos, na qual os mais fracos são massacrados pelos mais fortes.”
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A questão é que, “abrir mão de um pouco de sua liberdade” valia também para a ganância na economia (ainda que com todo respeito à iniciativa privada) e não apenas para os costumes. Este liberalismo centrista, obtido sob pressão pela luta dos trabalhadores entre 1815 e 1870, foi suprimido pelo neoliberalismo de Hayek/Mises/Friedman/Buchanan no início do século 20, sob o impacto das dificuldades do capitalismo histórico (Wallerstein, 2001) que já podia ser antevisto no final do século 19, motivando duas grandes guerras no século seguinte.
O acordo liberal centrista, de fato, não era para ser levado muito a sério. A razão era simples: se fosse levado a sério, causaria problemas para os processos de acumulação contínua do capital, os quais não têm limite e devem ser sempre crescentes. As demandas dos trabalhadores (salários, educação, saúde, segurança, condições de trabalho e de vida) interferem com o lucro. Aos olhos do capital, esse acordo nasceu morto.
A emergência de governos que decidiram levar este acordo um pouco mais a sério (a socialdemocracia) foi a gota d’água. À medida que o Estado foi gerindo o acordo centrista (ganha-ganha) atendendo às demandas do mercado e também às demandas da realização da limitada inclusão social prevista no acordo, o Estado foi ficando maior e mais caro. As demandas da inclusão chocaram-se com as demandas do capital. Sobreveio a crise fiscal que acabou exigindo mais impostos a serem pagos pelo andar de cima. Os novos encargos colocavam limites ao processo de acumulação já desgastado por outros fatores produtivos. O acordo chegou ao fim.
É bem verdade que, de fato, ele não atendeu nem aos trabalhadores que continuaram pobres e nem ao capital que teve seus planos de expansão contínua e crescente ameaçados, especialmente a partir de 1970. Mesmo os trabalhadores que melhoraram de vida, o fizeram na expectativa de mais igualdade e participação, algo que não estava previsto no contrato centrista original.
É por isso que Paulo Guedes diz que no Brasil os governos fizeram opção pela pobreza. E é por isso que ele também diz que vai embora se as reformas falharem: ele sabe que é uma cartada final e tem a ilusão de que ela irá funcionar, a despeito, de que ela esteja sendo aplicada sem resultado desde os anos 70. Mas, para o capital, não há outra alternativa no momento, a não ser conter as demandas dos trabalhadores, turbinar o mercado, destruir a organização sindical da classe trabalhadora, remodelar a democracia liberal tirando o poder de influência das massas trabalhadoras organizadas sobre o Congresso de forma a impedir que este legisle a favor daquelas.
Neste processo, o neoliberalismo revogou a lei da democracia liberal baseada na representação que permite decisões a partir da construção de uma maioria legítima. O capital sabe que as elites são minoritárias, sabe que a pobreza vai aumentar ainda mais e quer deslegitimar o poder desta maioria, estabelecendo que toda decisão majoritária é uma coação sobre a minoria (MacLean, 2917). Os golpes se tornaram a forma de implementação dessa filosofia que visa garantir a liberdade do livre mercado e não a democracia. Como dizia Hayek: o que importa é o livre mercado e não a urna (Selwyn, 2015).
Para o capitalismo, o ganha-ganha socialdemocrata não é solução, pois ele contraria a própria natureza “selvagem” da acumulação contínua e crescente do capital, a qual renasceu ao longo do século 20 como neoliberalismo: a empresa como modelo social e a concorrência como princípio geral de funcionamento das instituições sociais, do Estado e do próprio indivíduo (Chaui, 2018).
Como sempre, neste momento o lado mais fraco paga a conta: os trabalhadores. O lado privilegiado é o do mercado, radicalizado nas teses neoliberais que agora, a direita quer chamar de “liberais”. De fato, elas são protofascistas, pois permitem que uma minoria imponha sua vontade sobre a maioria – se necessário pelo golpe – e jogam os indivíduos na lógica do livre mercado sem proteção social, ampliando a precarização do trabalhador a título de que isto gerará postos de trabalho, ocultando que a revolução 4.0 e a inteligência artificial chegam com as reformas para retirar mais postos e precarizar (Collins, 2013), para júbilo das elites minoritárias.
No fundo, esta posição apenas quer se fazer passar por “liberal”, com o intuito de abrir um espaço político e contrapor-se aos conservadores. Contrapondo conservadores e esquerda, ela quer ser o novo centro político entre um e outro. As elites brasileiras são obtusas e não conseguem ver que o que está em jogo é o próprio sistema histórico capitalista mundial. Tratam a presente crise como se fosse um enfrentamento conjuntural brasileiro. Nisso, se parecem a alguns setores da esquerda brasileira.
Por este fio de navalha vai transitar o DEM de ACM Neto e Maia, seguido de perto pelo PSDB de Doria, agora reformulado. Este pessoal quer ser o herdeiro dos votos de Bolsonaro e consolidar a direita “liberal”. O centro que antes era disputado pelo antigo PSDB e PT moderado, agora aparece como sendo disputado pelo DEM e pelo PSDB reformulado – a “nova direita” de aparência moderada (frente a Bolsonaro). É a mesma direita esforçando-se para se apresentar crível perante o mercado, separando-se dos conservadores e, também, separando-se da socialdemocracia que geriu o acordo do liberalismo centrista, chamado agora de “esquerda enferrujada”. Eliane Cantanhêde resume a posição:
“Depois dos votos do relator Ricardo Lewandowski e do ministro Edson Fachin, contra as vendas sem aval do Congresso, quem mais chamou a atenção foi Luiz Roberto Barroso, que resume um personagem em ascensão da cena brasileira: “à esquerda” nas questões de costume e “à direita” na economia. Ou seja, liberal em ambas, enquanto a tal esquerda enferrujada mantém ojeriza à abertura que gera investimentos e empregos e a tal direita insiste numa visão retrógrada e desgarrada da realidade em costumes.”
Leia aqui.
É o jogo que se viu nas eleições passadas, mas que não funcionou porque o mercado queria uma ruptura de contrato social que anulasse o acordo liberal centrista e assumisse o neoliberalismo radical de mercado – mesmo que à custa de se aliar com os conservadores, dos quais agora quer se livrar.
O que fica de fora deste “liberalismo” é a inclusão social, já que isso contraria as teses neoliberais. Este “liberalismo” mutila a tese liberal clássica que prevê a aceitação da limitação de uma parte da liberdade econômica e de costumes de cada um em nome do bem comum. A direita aceita ceder nos costumes, mas não na economia, onde permanece com a concepção neoliberal da lei do mais forte. De quebra, negocia os direitos políticos e sociais em proveito do livre mercado. Os verdadeiros liberais deveriam reagir a esta apropriação indevida do liberalismo.
E o que é chamado de “liberal”, ao deixar de lado a inclusão social para aceitar as teses econômicas da austeridade, simplesmente se converte em neoliberal, uma vertente que não favorece a inclusão social, que advoga pelo livre mercado radical e é indiferente quanto aos costumes, pois, ao final, o livre mercado tudo regula. Presta um desserviço ao país, pois ao camuflar as teses econômicas neoliberais acolhe também o protofascismo incluso nelas (o princípio universal da vitória sobre o concorrente), ou seja, favorece uma organização social na qual vence o mais forte – um darwinismo spenceriano – o que aponta para uma ultra-direita econômica, mas de costumes liberais, pois, com isso, camufla, ao final, o próprio protofascismo derivado do mercado concorrencial radical e não inclusivo.
Todo o esforço dos “liberais” brasileiros é para preservar o nome formal de “liberais”, sem o contrato social liberal, portanto vazio (que pretendem seja o novo centro), sem que sejam denominados de conservadores ou de neoliberais. Ocultam seu neoliberalismo protofascista no que denominam de “liberalismo”.
A bibliografia pode ser encontrada aqui.
Muito bom Luiz Carlos. Foi a fundo na aplicação da teoria e da história e desnuda as verdadeiras tramas em curso no Brasil e no mundo capitalista atual. Da análise teórica /inevitavelmente ideológica, avança para o terreno da movimentação das forças políticas! Questão essencial para estabelecermos uma linha de ação ( ações) políticas de enfrentamento (teórico/ideológico e prático) contra essas forças retrógradas e, porque não (?), promotores da barbárie moderna.! Enfrentamento de caráter não só tático, mas também estratégico, na luta por nossos ideais e objetivos de transformação social revolucionária!! Parabéns. Fernando Pupo.
Obrigado. Abraco.
Luiz