Continuação de post anterior.
Embora no caso brasileiro seja cedo para concluirmos que a análise de Fraser se aplica à configuração do atual governo, dadas as condições políticas de um país semi-periférico e os autores envolvidos (militares inclusive), o que se vê nestes primeiros meses de governo se parece muito ao quadro americano. Especialmente quanto às dificuldades para que se crie um bloco hegemônico que ofereça “segurança” para o “mercado”. Este é o lado subjetivo da crise.
Mas há um lado objetivo desta crise, o econômico, o qual no caso brasileiro ainda não é creditado ao neoliberalismo, como no caso norte-americano, pois não vivenciamos plenamente todas as consequências dos ensaios de neoliberalismo havidos no Brasil, o que ainda permite acenar para as classes médias e até as mais pobres, embaladas pelas políticas de inserção no consumo da socialdemocracia, e manter durante algum tempo o apoio necessário a tais políticas reacionárias, até que fique claro que são políticas destinadas a maximizar os ganhos do financismo rentista. Isso gera dificuldades para que se tenha uma percepção mais ampla do que Fraser chama de “crise objetiva”, derivada dos parâmetros de funcionamento do capitalismo rentista típico do neoliberalismo. Somente agora, com Paulo Guedes, estamos entrando nesta era de forma plena.
Parece-nos, portanto, que as reformas neoliberais em curso no Brasil são o ponto de ancoragem mais efetivo para a crítica do atual governo e a reconstrução da esquerda, do que a crítica ao conjunto das formulações conservadoras. Tal constatação, ou seja, a importância de enfrentarmos as políticas neoliberais, coloca a educação como uma frente de luta essencial já que é por ela que o neoliberalismo reacionário pretende formar a juventude nas teses de uma geocultura meritocrática. É dentro destas reformas neoliberais que teremos a continuidade da reforma empresarial da educação com seu componente privatista, fundamental para a reconfiguração da geocultura liberal centrista em uma geocultura meritocrática.
A âncora desta formulação parte da constatação de que a base da proposta econômica, tanto de liberais como de neoliberais, no Brasil, são as reformas econômicas neoliberais, dentre elas a reforma empresarial da educação. Este é o ponto de partida. Os conservadores não têm projeto, pois não querem mudar nada, apenas restabelecer a ordem passada já conhecida e que acreditam ter sido maculada (curiosamente pelos liberais).
A divergência entre liberais e neoliberais está na intensidade e profundidade destas reformas e no maior ou menor respeito à democracia liberal, o que permite pensar que, tal como nos Estados Unidos, poderemos ter a emergência de um neoliberalismo “progressista”, formulado em contraposição ao neoliberalismo reacionário de Bolsonaro. Uma espécie de neoliberalismo que, por contraste com Bolsonaro, pareça progressista, mas sob forte hegemonia da direita liberal/neoliberal, sem os excessos dos conservadores. O mal estar dos reformadores empresariais da educação com Bolsonaro é só este. Quanto a esquerda vai embarcar nisso também não é possível antever, mas se deseja ter algum futuro, precisará se diferenciar já – tirando algum ensinamento da derrocada do liberalismo centrista (socialdemocracia, inclusa).
É preciso atentar para um elemento central nesta diferenciação. O projeto neoliberal envolve o sequestro da proposta “emancipatória” da esquerda (daí os ataques a Paulo Freire desfechados pelos conservadores sob o silêncio dos neoliberais). Tal projeto será reconfigurado, agora, como “emancipação pela meritocracia”. Sobre isso adverte Fraser, ao examinar as políticas de Obama:
“A igualdade significava meritocracia. A redução da igualdade à meritocracia foi especialmente fatídica. O programa neoliberal progressista, para criar uma ordem mais justa, não visava abolir a hierarquia social, mas “diversificá-la”, “empoderar mulheres “talentosas”, pessoas negras e as minorias sexuais para chegarem ao topo. Esse ideal é inerente a classes específicas, voltado para garantir que indivíduos “merecedores” de “grupos sub-representados” possam alcançar posições e estar em pé de igualdade com os homens brancos heterossexuais de sua própria classe. A variante feminista é reveladora, mas, infelizmente, não é a única. Focada em “inclinar-se” e “quebrar o teto de vidro”, seus principais beneficiários só poderiam ser aqueles que já possuíam o necessário capital social, cultural e econômico. Todos os outros ficariam presos no porão”. (Idem, 2019, posição 85.)
A problemática racial, por exemplo, e mesmo a questão mais ampla da inclusão social não são apenas uma questão moral, como quer fazer parecer o neoliberalismo progressista e meritocrático, mas são um limite imposto pela organização social do capitalismo, ligado à estruturação e dinâmica de suas classes sociais.
A questão, portanto, não é incluir os melhores de cada classe social, numa espécie de bônus por mérito. É a própria existência de uma lógica exploradora entre seres humanos – potencializada pelo proto-fascismo neoliberal – a responsável pela crise objetiva – ecológica, econômica e social -, sob a égide de um sistema cuja finalidade central é acumular dinheiro para acumular mais dinheiro, em um círculo sem fim que esgota a natureza humana e não humana.
Continua no próximo post.
Convém lembrar que em seu livro “Renovar a Teoria Crítica e Reiventar a Emancipação Social”, Boaventura de Sousa Santos escreveu em 2007 que: “está emergindo uma nova forma de facismo que não é um regime político, mas um regime social. É a situação de gente muito poderosa que tem poder de veto sobre os setores mais fracos da população.”
Correto, mas é preciso dizer que o “novo” não passa de mais do mesmo, agora intensificado em meio à crise do sistema histórico capitalista pelo neoliberalismo, cujo fracasso motiva o populismo reacionário de Trump. Abraço
Luiz