Continuação de post anterior.
Em post anterior, mostramos, com a ajuda da análise de Chauí (2018), os traços básicos deste padrão sócio-cultural neoliberal, que Wallerstein chama de “geocultura”, e que está sendo implementado sob a égide das reformas neoliberais.
A análise destacava a homogeneização das instituições sociais e do próprio Estado a partir da lógica das organizações empresariais. Este processo arrasta também o indivíduo, o qual passa a ser visto como um “empresário de si mesmo” e que, portanto, precisa ser formado, como tal, nos processos educacionais, para o que se disparou, via OCDE, o que Sahlberg (2011) chama de Movimento Global de Reforma da Educação.
Como vimos, o objetivo desta reforma empresarial da educação é desenvolver esta “percepção” de que o futuro de cada um depende do que o indivíduo faz, por si mesmo. Esta ambiência envolve inserir escolas, professores e estudantes em processos concorrenciais, guiados pela padronização de metas, avaliação e responsabilização constantes. Juntamente com os conteúdos cognitivos, enfatizam-se determinadas habilidades sócio-emocionais e até mesmo se procura desenvolver para o estudante um “projeto de vida”.
A vivência da concorrência oferece uma perspectiva individualista e imediatista, ligada ao “status quo”, ao “real”, e que promove a disputa: o vencedor leva tudo. Não se trata de apontar para uma construção coletiva e solidária, mas de enfatizar uma decisão pessoal e imediata de construir, agora, “seu próprio projeto de emancipação”, o qual se realiza pelo acúmulo de mérito no “mercado”. Fora da lógica concorrencial do mercado, não haveria futuro. A tríade “vida, liberdade e propriedade” é oferecida como rota de emancipação: vida é o seu futuro, liberdade é o seu presente (portanto, veja o que vai fazer com ela) e a propriedade é o resultado do que cada um fez com sua liberdade. Tudo isso sob o manto das “habilidades para o século XXI”, entre elas a “autonomia” e a “resiliência“.
O que está oculto nesta formulação é que “estar no mercado” é aceitar a subordinação à sua lógica, a qual levaria à suposta “emancipação”, mas sempre no limite do seu mérito, ou melhor, desde seu lugar na hierarquia meritocrática.
Ocultados os condicionantes sócio-econômicos que regulam a obtenção do mérito, o que aparece para o jovem é o seu “esforço”, que agora passa a ser o responsável pelo seu grau de mérito – isentando o próprio sistema social pelo seu eventual infortúnio. Acuado pelas crises, o capitalismo apertou o botão “dane-se”. Estar “incluso” é reduzido à dimensão da inclusão no mercado concorrencial, por conta e risco próprios: daí advém o proto-fascismo neoliberal da sobrevivência do mais forte.
Mas não seria a promessa neoliberal uma nova decepção? As notícias não são boas para este neoliberalismo individualista. O problema é que o seu fracasso conduziu ao populismo reacionário de Trump.
A questão para a esquerda é como e em que momento isso se torna claro para a juventude? Que outra proposta temos para ela? Qual o trabalho político que tem que ser feito para este esclarecimento? Novamente, temos o desafio educacional pela frente.
O papel dos conservadores no Brasil é este: travar as propostas da esquerda, enquanto os neoliberais desenvolvem uma nova geocultura. É isso que Paulo Guedes quer dizer quando afirma que os conservadores colocam “ordem” e os liberais “o progresso”.
Examinando as possibilidades da esquerda nos Estados Unidos, Fraser diz:
‘Hoje, portanto, os dois polos de crise – um objetivo, o outro subjetivo – estão em pleno desenvolvimento. Eles se mantêm ou caem juntos. A solução da crise objetiva requer uma grande transformação estrutural do capitalismo financeirizado: uma nova maneira de relacionar a economia à política, a produção à reprodução, a sociedade humana à natureza não humana. O neoliberalismo, sob qualquer pretexto, não é a solução, mas o problema”. (Posição 320.)
E isso vale para as reformas neoliberais em curso no Brasil e mostra a importância de se enfrentar a reforma empresarial da educação – que é a ponta de lança da geocultura meritocrática do neoliberalismo (reacionário ou progressista) para a formação da juventude.
Sem que desvelemos as reais razões pelas quais o liberalismo e a democracia liberal representativa estão em crise, ou seja, o lado objetivo destacado por Fraser, não recuperaremos a credibilidade necessária para criarmos um padrão sócio-cultural alternativo ao neoliberalismo reacionário. Muito menos ainda, se o discurso da esquerda resolver seguir no Brasil o caminho norte-americano do “neoliberalismo progressista”, cunhado pela “terceira via” de Blair, Clinton e Obama.
Para Fraser, no caso americano, pode ser necessário contrapor ao “populismo reacionário” de Trump, um “populismo progressista” de esquerda, ainda que não como estratégia final:
“Por mais distante que a perspectiva possa parecer agora, nossa melhor chance de uma resolução subjetiva-objetiva é o populismo progressista. Mas mesmo isso pode não ser um ponto final estável. O populismo progressista pode acabar sendo transitório – uma rota a caminho de alguma nova forma pós-capitalista de sociedade.” (Posição 326.)
Para ela, a defesa de uma combinação entre uma “redistribuição igualitária” associada ao “reconhecimento não-hierárquico”, poderia ter a chance de mobilizar amplos setores sociais e produzir uma maior união da classe trabalhadora.
“Mais do que isso, poderia posicionar essa classe, entendida de forma expandida, como a força principal de uma aliança que também inclui segmentos substanciais de jovens, a classe média e o estrato profissional-gerencial ”. (Posição 249.)
A polarização que se observa na política (e mesmo a suposta “nova razão”), não passa de uma ação desesperada para salvar ou prolongar a vida de um sistema doente. Sua violência, revela sua fraqueza.
Com o edifício do capitalismo em chamas, sendo obrigado a chamar os bombeiros neoliberais – os antigos “Chicago boys” com suas medidas radicalizantes e cada vez com menos margem de manobra -; sendo obrigado a rejeitar a própria democracia liberal; e tendo chegado a transferir para o próprio indivíduo a razão de seu eventual fracasso – enquanto os monopólios assaltam o Estado em busca de garantias para sua acumulação contínua -, o capitalismo não apenas trai suas promessas de progresso social (mesmo que relativo, produzido no âmbito de um liberalismo centrista e socialdemocrata), mas no rastro deste fracasso, que atinge todas as instituições sociais, cria um vácuo propício ao populismo reacionário. Esta é a crise da velha razão liberal do mundo, posta em marcha ainda no século XVI com o advento do capitalismo.
Se nos Estados Unidos foi a crise dos neoliberalismos que abriu espaço para o populismo reacionário, é preocupante que, por aqui, o populismo reacionário já tenha se associado ao neoliberalismo antes mesmo deste se configurar em fracasso, como que em uma antevisão, a espreitar pelas oportunidades futuras.
Isso torna urgente que nos empenhemos não apenas na resistência ao neoliberalismo e ao populismo reacionário, mas na aglutinação das forças anti-sistêmicas, com vistas a construir novas alternativas pós-capitalistas que nos levem a um sistema social mais igualitário e mais democrático, única forma de termos, de fato, uma “nova razão do mundo”.
Viveremos tempos difíceis, mas igualmente promissores.
As referências podem ser encontradas na página “Bibliografia” neste Blog.