Digitalização exige sistemas de educação públicos e fortes

Conta-se que o Rei Pirro de uma das regiões da Grécia enfrentando os romanos na batalha de Heracleia, a 280 AC, no que se chamou de Guerra Pírrica, teria se expressado após sua vitória da seguinte forma: “outra vitória igual a esta nos arruinaria completamente”. Deriva daí a expressão: “vitória de Pirro”.

O recente entusiasmo de reformadores empresariais e empresas educacionais pela rápida expansão do “ensino remoto” em tempos de pandemia, pode vir a ser, de fato, não apenas uma vitória, como desejam, mas uma “vitória de Pirro.” Esta reversão deriva da crença que têm em soluções restritas, ou seja, ligadas à dinâmica interna da escola.

Com isso, propaga-se o “solucionismo tecnológico” típico do mundo das oportunidades empresariais: uma base nacional comum curricular à qual se alinham os professores, os materiais didáticos (inclusive digitais presenciais ou à distância), a formação dos professores e a avaliação. Descrentes das capacidades dos professores, saúdam a tecnologia pré-fabricada dos pacotes digitais “assistidos” por tutores. E… voilà!, com tudo devidamente alinhado, só poderá advir daí a “qualidade” com “equidade”.

Se, por um lado, houve rápida introdução deste tipo de tecnologia nos meios educacionais durante a pandemia, gerando otimismo tecnológico, por outro, através da própria pandemia – só não vê quem não quer – ficou evidente sua fraqueza, como bem aponta Margarita Langthaler no blog NORRAG.

“A digitalização é vista por alguns como a chave não apenas para a melhoria da qualidade, inovação, criatividade e autonomia dos alunos, mas também para o acesso educacional e equidade. No entanto, a pandemia trouxe à luz as armadilhas da digitalização acelerada em termos de desigualdade e exclusão crescentes. No centro da questão estão a exclusão digital e as assimetrias de poder associadas a ela. Estes são especialmente evidentes ao longo das linhas Norte-Sul, rural/urbano, rico/pobre, poderoso/marginalizado e gênero.”

A autora cita um estudo da OCDE, de 2015, portanto de antes da pandemia, onde esta tendência já se fazia presente:

“Uma avaliação de habilidades digitais da OCDE de 2015 conclui que, apesar dos pesados ​​investimentos em alguns países, não houve melhora perceptível no desempenho dos alunos na avaliação do PISA (OCDE, 2015). O relatório concluiu que a lacuna de desempenho entre alunos favorecidos e desfavorecidos se refletia nas habilidades digitais, sugerindo que a digitalização por si só não reduz as desigualdades educacionais. Os estudos que abordam os efeitos da digitalização sobre os resultados da aprendizagem no Sul Global relataram resultados mistos. Embora as habilidades de digitalização tenham melhorado, quase não houve impacto positivo no desempenho acadêmico.”

A pandemia agravou esta situação. A autora conclui que:

“Ao final, a principal lição a tirar da pandemia em relação à digitalização da educação resume-se no fato de que adicionar as tecnologias digitais aos padrões de desigualdade existentes apenas os exacerbará. Portanto, depende-se de governança política para complementar a abordagem prevalecente desta empregabilidade, por meio de uma abordagem da educação baseada em direitos. A aquisição de competências digitais e a participação na educação digital, muito mais do que um requisito da futura economia digital, deve ser vista como um direito humano básico.”

Ou seja, digitalização exige sistemas de educação públicos fortes. A relação professor-aluno desenvolvida em sala de aula (e não via chats ou baseadas em tutores assistentes) converte-se em peça chave na batalha pela educação de qualidade.

Leia a íntegra aqui.

Sistemas de educação públicos fortes exigem professores bem formados e com condições de trabalho, mas exigem também que políticas públicas adicionais cuidem de melhorar as condições de vida da população – real causa da desigualdade social. O direito ao digital terá que se somar à atenção de outros direitos fundamentais.

E como isto é cada vez menos enfatizado em tempos neoliberais, onde a desigualdade é bem-vinda por cumprir uma função de competição e disputa social meritocrática, o grande entusiasmo pelo ensino híbrido ou à distância, pode converter-se, de fato, em uma vitória de Pirro, alimentando a desigualdade e segregação sociais.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
Esse post foi publicado em Links para pesquisas, Privatização, Responsabilização/accountability e marcado , , , . Guardar link permanente.

Uma resposta para Digitalização exige sistemas de educação públicos e fortes

  1. Eliane Costa da Silva disse:

    Amo ler tudo o que o senhor posta! Estou usando os seus artigos para produzir a minha monografia. 🙂

Deixe um comentário