Senna ou o autismo científico (socioemocional)

Se você quer um exemplo de “autismo científico” leia esta entrevista de Viviane Senna. Ela considera que a educação vive uma fase de pré-ciência e que é preciso torna-la científica. Algo assim já ouvi uns 40 anos atrás.  Diz na entrevista que:

“Um estudo da entidade mostrou que qualidades como a dedicação e o foco têm quase o dobro do impacto no desempenho escolar em comparação com fatores tradicionalmente mais considerados, como cor, gênero ou ambiente familiar. Para ela, isso hoje é subestimado por escolas e professores. “Ninguém vai aprender se não for responsável, se não ralar.””

Eis a conclusão “científica” a que chegou Viviane. Os estudantes têm que ser “accountable” por sua aprendizagem. Qual é o estudo, em que condições metodológicas foi feito, etc., não é dito. Estas entidades confundem, usualmente, advocacia de ideias com ciência. O que fazem é “escolher” ou produzir estudos que conferem credibilidade a suas próprias ideias.

Como já comentei antes, estes movimentos acabam alinhando-se a teses conservadoras e de aumento de exigência de disciplina dos estudantes, em especial, dos mais pobres.

“Você tem de colocar para o professor que a meta dele é ter 100% de sucesso. Aí ele vai aprender a ter responsabilidade e não arrumar desculpa, dizendo que o aluno é pobre ou que a família dele é desestruturada. Se você ensinar, o aluno aprende. Quando isso acontece, o aluno passa a acreditar no professor e vice-versa. O professor também deve ser persistente. Se o aluno falta, o professor vai até a casa dele ver o que aconteceu. Um serve de exemplo ao outro. É cruel quando a escola permite que a escola desista da própria inteligência. Você ensina a atitude para o professor, que vai ensinar pro aluno.”

Seja “accountable”!! Eis a fórmula do sucesso. Professores e estudantes não conseguem ensinar ou aprender porque não são responsáveis. Fácil assim, mas vinte anos de responsabilização nos USA não conduziram ao sucesso. E há ciência sobre isso por lá. Ou também lá estamos na pré-ciência?

Certamente, Viviane imagina que o seu Instituto iluminará a educação com sua verdadeira ciência. Recentemente, o Instituto Senna contratou Paes de Barros (ex-SAE – Secretaria de Assuntos Estratégicos) para o Instituto.

É curioso ver a dança das cadeiras: os reformadores empresariais trocam de posição a cada certo tempo. Ora estão em algum órgão do governo defendendo suas teses “científicas”, ora estão nos institutos e na iniciativa privada implementando estas mesmas teses. Assim, quando no governo fazem a política, e quando fora do governo, implementam a própria política. Mozart, esteve no Conselho Nacional de Educação fazendo política, agora está no Instituto Airton Senna implementando suas ideias; Paes de Barros esteve na Secretaria de Assuntos Estratégicos e agora está no Instituto Airton Senna.

Em ciência, é muito fácil ter a “verdade científica”- basta produzir sua própria pesquisa e de preferência não submetê-la ao crivo da comunidade científica especializada. Tem sido o caminho dos reformadores empresariais da educação americanos: produzem isoladamente sua própria pesquisa, com seus próprios métodos em suas fundações privadas. E como não precisam enviar a nenhuma revista, pois eles mesmos financiam a publicação de seus próprios relatórios, os estudos acabam, em sua maioria, não passando pelo crivo dos pares, dos profissionais que têm condições de fazer a crítica. Uma vez publicados sem parecer de terceiros, passam por verdades em belas brochuras coloridas ou e-books. Parece que estão fazendo escola por aqui.

Por exemplo, a questão das atitudes socioemocionais é tratada sob um determinado ângulo pelo Instituto Senna que faz suas escolhas teóricas e oculta as outras produções existentes na área. A sua “verdade” científica, quando analisada, não é tão verdadeira assim. Sua teoria da personalidade não tem a importância que eles atribuem a ela.

Demorei para postar esta matéria porque estava esperando um artigo sobre o tema ser publicado. Você pode ler este excelente artigo aqui. Sobre ele também falarei mais especificamente em outro post.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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5 respostas para Senna ou o autismo científico (socioemocional)

  1. Lucia Couto questionou pela rede social, em outro espaço, minha afirmação de que é a comunidade científica especializada quem deva submeter a análise a produção científica e se pronunciar sobre ela. Bem, se não é ela, quem seria? Segundo, não é assim com os nossos artigos que queremos publicar nas revistas científicas? Não são submetidos a pareceres de pares independentes?
    O que estou colocando em relevo é que a produção de muitas destas fundações não passa por critérios ou crivos públicos. Embalam muito bem a produção, mas não a submetem a análise de pares independentes. Muitos resultados que produzem, apesar de corretos, não têm força para orientar política pública, pois são insuficientes do ponto de vista tendencial. Precisariam ser situados no conjunto da produção da área que inexiste forma das comunidades especializadas, exatamente pela unilateralidade com que muitas destas fundações abordam os problemas.
    Mas não é só isso. A compreensão de Lúcia sobre esta comunidade é equivocada. Ela imagina que esta comunidade de especialistas seja monolítica. Não. Ela é só especializada no sentido de que está familiarizada com as várias propostas e enfoques com um determinado assunto, bem como reúne conhecimentos metodológicos específicos que permitem examinar criticamente os métodos empregados e as conclusões obtidas.
    Equivocadamente, Lucia chega à conclusão de que tenho uma concepção autoritária e de controle a partir desta comunidade especializada.
    Ora, esta comunidade é múltipla em seus entendimentos, debate democraticamente em congressos e seminários suas posições e lida muito bem com a diversidade delas. Não tem nada de autoritário nisso.
    Ao contrário, algumas destas fundações ligadas ao dinheiro de empresários são máquinas de produzir informações alinhadas a uma só ideia ou enfoque que ela mesma defende. Confundem usualmente a produção de ciência com advocacia de suas ideias.
    Portanto, o autoritarismo está lá e não aqui.

  2. Prezado Luiz Carlos,

    lembro-lhe que o que você relata neste texto foi objeto de ações da ANPED. A parceria firmada entre a Capes e o Instituto Ayrton Senna (IAS) para a criação do “Programa de Formação de Pesquisadores e Professores no Campo das Competências Socioemocionais”, iniciativa rechaçada pela comunidade científica da área da educação, consta no documento da ANPED datado de 07 de novembro de 2014 e intitulado “Carta aberta à comunidade acadêmica e aos representantes de Secretarias e órgão do Ministério da Educação sobre avaliação em larga escala de habilidades não cognitivas de crianças e jovens”. Trata a citada Carta de “[…] rejeitar a adoção, como política pública, do programa de medição de competências socioemocionais, denominado SENNA (Social and Emotional or Non-cognitive Nationwide Assessment), produto de iniciativa do Instituto Ayrton Senna em parceria com a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)”. Penso que esse movimento da ANPED contribui com seus argumentos.
    Um abraço!

    Marcos Francisco Martins
    UFSCar – campus Sorocaba

  3. Leonardo disse:

    o texto escrito é bom, entretanto o título “autismo científico” soa bastante capacitista e me fez não repassá-lo em lugares em que a entrevista da Senna foi publicada na internet, sugiro que troque-o em respeito às pessoas autistas a quem o senhor se refere de modo pejorativo no titulo do texto

    • Não vejo desta forma. O artigo não implica em preconceito contra o autista, apenas toma uma característica para reproduzi-la em outra situação. Esta outra situação não é igualmente preconceituosa, apenas indica que, em ciência, não é possível avançar de forma isolada. Mas respeito sua percepção. Grato por encaminhá-la.

      • Josué Danich disse:

        Aqui vemos a diferença e o porque a comparação é pejorativa…

        O ilustre instituto escolhe o isolamento e a falta de comunicação voluntariamente… as pessoas dentro do TEA tem dificuldades com o contato social e lutam 24×7 para ter mais comunicação e romper o isolamento…

        a comparação do título sugere que essas pessoas se isolam por que querem como as desastradas análises psiquiatricas fizeram por décadas… é como chamar um pessoa preguiçosa de paraplégica… um insulto aos que enfretam desafios diários e além de serem rotulados se vêem obrigados a compartilhar esses rótulos com os que não enfrentam as mesmas dificuldades e ainda escarnecem das próprias oportunidades….

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