O homeschooling – ou ensino em casa – é mais uma manifestação da articulação liberal/conservadora que, sob hegemonia neoliberal, insere-se nas políticas de eliminação progressiva do Estado (restringindo sua ação ao aparato repressivo).
O homeschooling conversa tanto com o liberalismo de segunda geração – ou neoliberalismo – o qual se autodeclara “libertário”, ou seja, anti-estatal, como também conversa com o conservadorismo que nele vê possibilidade de restringir a educação das crianças aos “valores da família”, criando um canal para fugir das políticas públicas democratizantes e igualitárias.
Guedes voltou de Davos confirmado como o “homem do capital financeiro” – todo poderoso. É ele quem vai dar as cartas e dele depende o futuro de Bolsonaro (e dos próprios militares). Ou seja, estão todos dependentes dos destinos da economia, os quais foram colocados nas mãos de uma solução fracassada no mundo todo e lucrativa apenas para o andar de cima, o capital financeiro.
A desigualdade social, como ocorre no resto do mundo que adotou a mesma ilusão neoliberal, vai disparar. Para o entendimento liberal/conservador, no entanto, não há desigualdade social, há apenas desigualdade de mérito. Para a aliança conservadora/liberal, reconhecer a desigualdade social seria reconhecer também a diferença construída a partir de “classes sociais” – mas isso, dizem, é ideologia e, portanto, coisa de comunista.
Por isso, Bolsonaro não fala em desigualdade social em seus discursos e nem na sua política. Por isso, a política social não é relevante para seu governo e sim a política econômica que coloca as pessoas frente a “oportunidades”. Agarrá-las ou não é uma decisão pessoal. Para os neoliberais quaisquer forma de proteção social que não seja a destinada à extremíssima pobreza é inadequada, pois permite que as pessoas sobrevivam fora da concorrência certificadora do mérito. Forma va-ga-bun-do. Não há desigualdade, há pessoas que carregam distintas quantidades de mérito todas obtidas na saudável concorrência e na competição – mães da eficiência e da competência. Portanto, o Estado deve ser mínimo e isso implica em privatizar suas várias áreas de atuação.
Esta visão não passa de uma adoção do darwninismo social onde o mais forte (leia-se o que acumulou mais mérito) sobrevive, cabendo aos portadores de menos mérito apenas ter que se esforçar mais.
O homeschooling atende todas estes objetivos: para os conservadores é a possibilidade de criar seu mundinho regido pelos “valores já assumidos pela família” – negando a possibilidade das crianças terem o direito a conhecer, de forma independente, a diversidade de posicionamentos e concepções como base para sua constituição; para os neoliberais o homeschooling é a oportunidade de contribuir para o desmonte do sistema educacional lançando-o à lógica da “anarquia criativa” do mercado, transferindo a educação para as famílias, mas de olho no mercado que florescerá para atender diretamente as famílias, financiado pelo Estado (vouchers), mas sem ter o Estado na administração direta da educação.
Para entender a política educacional do governo Bolsonaro é preciso partir destes conceitos e juntar ações dispersas e diversionistas que serão tomadas isoladamente, ora no Ministério da Família, ora no Ministério da Economia, ora no próprio Ministério da Educação. Como já indicou Mourão o governo Bolsonaro veio para desmontar o Estado (e suas instituições).
Defendendo o oportunismo político na articulação dos liberais com outras correntes, Salerno diz:
“O oportunista, portanto, não quer nem demolir o estado da noite para o dia e nem seguir um plano — delineado a priori — extravagante e fantasioso de diminuir o estado de uma maneira mais “humana”. Ao contrário, ele quer desmantelar o estado o mais rapidamente possível, tirando proveito de toda e qualquer oportunidade que eventualmente surja em meio ao infindável e instável fluxo de circunstâncias sociais, econômicas e políticas.”
Leia aqui.
O homeschooling encaixa-se perfeitamente dentro desta lógica geral do neoliberalismo que exalta a concorrência, o estado mínimo, o mérito, e a diluição da proteção social (inclusive porque encarece o trabalhador), transferindo as ações antes sob responsabilidade do Estado, primeiro para o âmbito dos indivíduos e depois para o mercado concorrencial. Como libertários, os neoliberais não aceitam que o Estado interfira na vida social e isso deixa aberta a porta para que os conservadores se utilizem dessa fórmula para a manutenção de seus “valores”, sob alegação de que são “valores da família”. É uma espécie de “ganha-ganha”.
Portanto, se para os conservadores o que interessa no homeschooling é a possibilidade de vincular a educação dos filhos aos valores da família, para os neoliberais interessa a criação do “mercado do homeschooling” e seus efeitos práticos sobre a diminuição do Estado – por menor que seja.
Falar em colocar o ensino em casa é alimentar a terceirização do ensino para empresas (não raramente religiosas, como já propôs Bolsonaro) ou para um profissional de sua escolha. Eis porque o homeschooling se inclui nas propostas baseadas na “escolha” dos pais (privatização da educação). A escolha dos pais acoberta toda sorte de proteção a “valores” conservadores e liberais, ficando à margem da ação do Estado sobre os sistemas públicos de educação. Foi assim que os americanos racistas escaparam da determinação da corte suprema americana quando em 1957 esta determinou a dessegregação racial obrigatória das escolas nos Estados Unidos.
O homeschooling terá, é claro, diferentes impactos nas famílias, na dependência do nível sócio-econômico destas. As mais pobres, dependerão de vouchers que transfiram dinheiro público para estas pagarem os custos do homeschooling; as mais ricas vão pegar carona nos vouchers também, mas não necessitam, rigorosamente, disso. Estas, ou estão com suas mulheres em casa e poderão elas mesmas com auxílio de material didático cuidar da educação dos filhos ou contratar “charters on line dedicadas ao homeschooling”. As muito ricas, terão adicionalmente preceptores especiais pagos a peso de ouro.
O homeschooling, portanto, não deve ser examinado separadamente dos vouchers e das escolas charters. Todas estas formas fazem parte de uma mesma abordagem destinada à privatização da educação e como tal enfraquecem gradualmente o financiamento da escola pública e conduzem à sua degradação – entre outras consequências nefastas para o próprio desenvolvimento das crianças.
Excelente análise. Precisa ser difundida também por outros meios.
Parabéns, Luiz Carlos. Como sempre, oferecendo profundas reflexões.
Grande abraço!
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Sei que é ingenuidade da minha parte, mas confesso que me ainda me surpreendo como a educação pode ser tornar coisa, produto.
Lendo as matérias recentes em torno do homeschooling, lembrei-me de um relatório que li recentemente destinado a investidores. Em uma tradução livre, o título seria “O mercado emergente da educação básica privada no Brasil” (https://marketbrief.edweek.org/marketplace-k-12/brazils-private-education-market-poised-take-leap-attract-investors-says-report/).
Quem tiver interesse, vale a leitura a título de mais um sinal dos movimentos que vimos acompanhando por aqui.