D e a placa do IDEB

Postado originalmente na Uol em 24/09/2011

“D” é um bom aluno em uma boa escola (melhor IDEB do Estado de SP). Vai à igreja. É cordato com os amigos. Nem a professora acredita que ele, “D”, tenha atirado nela. O pai está inconsolado. Todos dizem que era um “aluno exemplar”. Os psicólogos não entendem. Caso ímpar, dizem. A polícia não se atreve a explicar. Todos estão chocados. Os educadores estão calados e os reformadores empresariais fingem de mortos.

Uma situação raríssima foi produzida: palco de um fuzilamento da professora por um aluno, seguido de suicídio, nenhuma crítica pode ser feita à escola: é nota alta no IDEB, a melhor do estado – tudo solucionado neste campo. Uma especialista chegou a dizer que “cabe à família acompanhar nesta idade o desenvolvimento emocional da criança”, reiterando que da escola se espera que ensine, mesmo, português e matemática. Como era de se esperar, a ninguém ocorreu perguntar pela ação educativa da escola e não apenas pela sua ação instrutiva – leitura e matemática.

Se a ideia de Ioschpe já fosse lei, esta escola teria em sua entrada uma bela placa com seu IDEB 6,7 – indicando o bom ensino que ali é praticado. A sociedade estaria, então, satisfeita com sua escola nada mais tendo a cobrar dela. Mas a realidade insiste em nos contrariar.

O caso, agora, vai repercutir por alguns dias. Depois, a exemplo de Realengo, será esquecido em nome dos ranqueamentos na Prova Brasil, no ENEM, nos SARESPs da vida em estados e municípios – sem contar, é claro, a importantíssima discussão: colocamos ou não uma placa do IDEB na porta das escolas?

Recentemente, um grupo de especialistas em avaliação, criticando os rumos da política educacional para a área escreveu:

“Preocupa-nos que no cotidiano das salas de aula e das escolas, tal função classificatória e, portanto, seletiva e excludente, venha retomando um lugar de destaque, impulsionado pela aplicação dos exames de larga escala utilizados para avaliação externa das redes e escolas, em detrimento das funções diagnóstica e formativa, estas sim, avaliações da e para a aprendizagem. No Brasil, os testes avaliam predominantemente proficiências em áreas de leitura e matemática. Mas, afinal para que avaliamos as crianças e os jovens que têm direito constitucional de frequentar a educação básica? Qual o papel social de nossa escola? O que se aprende e o que se ensina na educação básica? Essas questões relacionam-se fortemente com o debate acerca da qualidade da educação oferecida.” (Carta de Campinas, setembro de 2011 – disponível em http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2011N14333 )

É disso que estavam falando – dos possíveis “Ds” que devemos ajudar a evitar. Qual a função social da nossa escola? O que entendemos por qualidade da educação? Notas altas no IDEB? Como formar nossa juventude e não apenas instruí-la?

O matador do Realengo tinha um bom português. Lembro-me de que os jornais aventaram a possibilidade de que seu bilhete tivesse sido escrito por outra pessoa. Assassinos não devem ter bom português. Ficaram surpresos. Este tinha. Em menos de um ano, desta vez um “bom aluno” quase mata a professora e depois – ato radical – suicida-se. O que significa para uma criança de 10 anos, tomar tais decisões?

Formar e ensinar são coisas diferentes. Mas quando nós educadores profissionais dizemos isso, os reformadores empresariais dizem que “isso é coisa de pedagogo, é pedagogês vago”. Para eles o que conta é a “matriz de referência”, o teste e a placa na porta.

Está em curso no país, copiando o esforço de Obama (USA), uma proposta de “definição de expectativas de aprendizagem” comum. Trata-se de uma agenda internacional que visa impor aos países a matriz de referência do PISA e tornar os processos de avaliação mais parecidos entre e dentro dos países. Nos Estados Unidos isso virou necessidade depois que os estados começaram a rebaixar seus “padrões” para “melhorar” o desempenho de seus alunos e acessar verbas federais mais facilmente. No Brasil, alguém, sabiamente, já ampliou esta proposta para “expectativas de educação e de aprendizagem”. A questão, entretanto, não é apenas o nome.

Ampliando o ensino para incluir a educação, não garantirá que evitemos novos “Ds”. É muito provável que as razões disso não estejam só na escola, mas teremos contribuído. Assim como os reformadores defendem que a escola deva ensinar mesmo quando os fatores adversos são fortes, assim também ela deve formar, mais ainda se os fatores adversos são fortes.

A má notícia para os reformadores empresariais é que pessoas que sabem português e matemática não são automaticamente bem formadas no campo dos valores e das atitudes. A ideia de que português e matemática são a porta de entrada para o desenvolvimento humano precisa ser reconsiderada – ou vamos continuar a ter “Ds” cada vez mais frequentes.

A segunda má notícia é que o desenvolvimento de valores e atitudes não deve ser tarefa delegada exclusivamente à família. Mesmo no caso de “D”, com uma família estruturada, isso não foi possível de ser obtido. Imagine em situações de maior pobreza.

Quantos “Ds” mais serão necessários para nos convencermos de que temos que ter um verdadeiro projeto para a juventude que não seja apenas passar no ENEM e consumir no shopping da esquina?

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About Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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