Edgar Rizzo: adeus ao mestre

Edgar foi meu professor na antiga Escola Normal. Faz tempo – só meio século. Chegou de Campinas para nos dar aulas em Pirassununga. Não me lembro do que. E não importa. Não foi pelo conteúdo de suas aulas que ele nunca foi esquecido por mim. Foi pela sua atitude como professor que invariavelmente pautava-se por confiar em seus alunos. Mesmo que nem todos correspondessem a esta confiança, nunca o vimos, apesar de rigoroso, insurgir-se contra nós. Foi pela sua capacidade de formar gerações que sempre foi lembrado por inúmeros de seus ex-alunos.

Cinquenta anos depois, não me lembro mais o que ele ensinava em sala de aula. Mas lembro que ele chegou devagar, como quem não queria nada e nos conquistou. Ganhou nossa atenção com a confiança, com a sua capacidade de ouvir-nos, com seu interesse e respeito pela nossa vida – simples. Sim, simples, pois nesta época a escola, em uma cidade do interior como Pirassununga, acolhia, por falta de opção e não por opção, alunos das mais variadas classes sociais, entre eles alguns que teimavam em continuar a estudar. E eu não estava no andar de cima social. Eu era um daqueles que vão à escola pois têm “direito à educação” – como dizem. Há os que não precisam ser lembrados disso. Nesta época ricos e pobres ainda habitavam a mesma sala de aula.

Não me lembro mais o que ele ensinava em sala. Mas me lembro que Edgar não escolhia aluno. Confiava e estimulava a todos. Sua grande arma: o teatro. Logo estimulou a criação na cidade de grupos de teatro – mas não de brincadeira, sérios. Várias foram as peças encenadas sob sua direção – para espanto de muitos outros professores. No contraturno, continuava professor de teatro – e não consta que recebesse por isso. Não havia “mais educação”.

Não me lembro mais o que ele ensinava, mas me lembro de que quando estava para terminar a Escola Normal e diplomar-me, foi ele que me perguntou como eu pretendia continuar a minha formação. Pergunta inusitada, mas que fazia todo sentido em um professor que confiava em seus alunos e que queria vê-los continuar a crescer. Eu disse “continuar a crescer”.

Foi ele quem me mostrou a chamada “universidade”. Cursava a Escola Normal com finalidade terminal. Daí deveria sair para dar aulas na escola com o benefício extra de não precisar servir ao exército – lei que vigorava à época para quem fazia a Escola Normal. Edgar “resolveu” que eu deveria continuar a estudar em uma Universidade. O local no qual seria mais fácil para ele me ajudar seria exatamente em Campinas – sua terra natal. A este objetivo direcionou seus esforços. Inscreveu-me um pré-vestibular na PUC Campinas, arrumou trabalho em um Banco, local para eu morar e me estimulou a vir para Campinas e “continuar a crescer”. Nas férias familiarizou-me com a cidade.

Não me lembro mais o que ele ensinava em sala. Não importa. Mas lembro de seu interesse por mim, de seu cuidado e, fundamentalmente, de sua confiança – que gerava mais confiança em mim. Certa vez, tomando um chope já em Campinas, no largo do Rosário, perguntei a ele como poderia retribuir-lhe tudo o que estava fazendo por mim. Ouvi do mestre que ele desejava apenas uma coisa como retribuição: “que eu me comprometesse sempre a fazer o bem”.

Hoje há um intenso debate sobre o que é ser um bom professor. Alguns acham que ser um bom professor se mede pelo impacto de seus ensinamentos ao final do ano letivo. Há até fórmulas matemáticas sendo criadas para tal. Para os reformadores empresariais o bom professor se mede pela sua atuação na sala de aula, por quantos objetivos ele consegue ensinar aos seus alunos. Quantos alunos “proficientes” existem na sua turma.

Mas mais do que avaliar um professor pelo que pode ensinar durante um ano, devemos avalia-lo pelo seu interesse no crescimento de seus estudantes – no crescimento global de seus alunos como pessoas. Devemos avalia-lo pela sua capacidade de ouvir e de estimular seus estudantes para a vida. Esta é a principal motivação de um professor e é isso que não consegue ser compreendido por aqueles que querem “industrializar” a profissão de professor. Isso nos ensina Edgar Rizzo. Nos ensina o poder de uma “atitude” e como ela afeta toda a aprendizagem de um estudante – inclusive na sala de aula – mesmo sem apostilas.

Não me lembro mais o que ele ensinava em sala de aula. Não importa. Mas me lembro de suas atitudes e de como elas foram vitais para minha vida. Como fortaleceram em mim a vontade de estudar cada vez mais. Talvez seja isso que se chame qualidade social da educação.

Para mim, ele foi um excelente professor. Perdemos hoje, seus ex-alunos, um grande mestre.

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About Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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10 Responses to Edgar Rizzo: adeus ao mestre

  1. Belíssima narrativa!!!

  2. Avatar de Ana Paula Carra Ana Paula Carra disse:

    Prof Luiz, histórias como essa nos ajudam a manter vivo o nosso compromisso com cada aluno, obrigada por compartilhá-la.
    O prof Edgar Rizzo estava certo em apoiá – lo e certamente se orgulhou do profissional que o senhor se tornou. O senhor também inspira muitos outros profissionais com sua atuação e compromisso com a educação.
    Abraço!

  3. Avatar de Eliana Cantos Eliana Cantos disse:

    Também fui aluna do Edgar Rizzo na década de 70 e nunca me esqueci dele, anos mais tarde encontrei-o no teatro Centro de convivência e pude reconhecê-lo e lembrar seu nome, quanto à matéria também não me recordo, apenas que tinha a ver com teatro, mas o ser humano que teve significado em minha infância, esse teve seu lugar especialmente guardado! Adeus Edgar Rizzo e obrigada por participar de fato da vida de seus alunos! Obrigada a você Freitas, fui sua aluna também e certamente não será esquecido! Forte abraço!

  4. Avatar de Benigna Villas Boas Benigna Villas Boas disse:

    Belo reconhecimento. Bela reflexão, mestre.

  5. Lindo texto professor Freitas! Em tempos tristes de individualismo, onde a percepção do sucesso é vista exclusivamente pelo mérito pessoal, seu texto recoloca a questão da essência do trabalho docente.

  6. Avatar de sonia sigrist sonia sigrist disse:

    Estou repassando seu texto para minha irmã. Maria Marcia. Ela tem sobre o Sr. a consideração sua com relação a Edgar Rizzo. Parabéns aos educadores que acreditam que fazer caminhar é o caminho.

  7. Avatar de Jefferson Mainardes Jefferson Mainardes disse:

    Belo texto, Prof. Luiz Carlos. Realmente vc continua fazendo o bem com suas ideias e seus textos.

  8. Avatar de adriana Varani adriana Varani disse:

    Bela homenagem e triste notícia!!

  9. Avatar de elsa paula mesquita rossi elsa paula mesquita rossi disse:

    O bom professor vive para sempre no imaginário de seus alunos. Texto muito bonito.

  10. Avatar de Andréa Cristina Trivelato Andréa Cristina Trivelato disse:

    Bom dia Sr. Carlos. Estou deveras triste em saber que, nosso professor Edgar, não está mais por aqui …No último sábado, fiquei sabendo “do talvez de sua partida”, e fui procurá lo no Google. E, cá estou, com minha dor de sentir a perda…e qto lendo todos os textos do jornal, somente estou sentindo algo inenarrável. Estou encolhida num vácuo…ELE, foi meu professor de matemática, quando criança. E, o REENCONTREI, na ESCOLA TEATRO TÉSPIS. Estou triste! *que estejas na PAZ e na LUZ CELESTIAL AMADO MESTRE EDGAR 🦋⚘🙌 💖 GRATIDSO ETERNA

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