INEP: a dupla negação do Presidente – I

 Durante o V Seminário de Educação Brasileira promovido pelo CEDES na Unicamp compus uma mesa com o presidente do INEP. Fui para o evento muito interessado em discutir a política educacional do INEP, seus fundamentos e consequências, em entender como está pensando os processos de avaliação e outros aspectos que sabemos estão em curso. Estamos assistindo a uma mudança no paradigma de controle da educação nacional via avaliação, baseada, agora, cada vez mais em plataformas de alta tecnologia. Tudo isso era matéria interessante para debate.

Para minha surpresa, o presidente do INEP não trouxe para o seminário nenhum aspecto da política nacional de avaliação em execução no INEP. Substituiu-a por um conjunto de conceitos seus sobre “desigualdade”, “justiça social” etc. Para o Presidente, o conceito de equidade precisa ser substituído pelo de “desigualdade”. Para ele, “inclusão, desigualdade e qualidade são agora pauta da educação por um amplo acordo internacional”. Ora, nós educadores, estamos brigando por isso há meio século pelo menos.

A análise apresentada por ele começa com a desigualdade social, mas rapidamente interioriza esta desigualdade na escola e a partir daí seu conceito perde conexão com a desigualdade social real e se converte em desigualdade escolar.

Não é preciso muito esforço para se perceber onde vai a análise. Por esta via, a desigualdade se torna uma questão de justiça social e se transforma mais adiante em base para as políticas de controle da escola de forma a corrigir esta falta de justiça social, bem ao sabor das propostas dos reformadores empresariais da educação.

Como bem coloca Ravitch:

“Concordo em que os professores fazem uma diferença enorme na vida das crianças, mas eu quero que ele reconheça que o jogo está contra as crianças pobres. É marcado pelas circunstâncias, e é marcado pela dependência obsessiva de nossas escolas por testes padronizados. Testes padronizados são baseados na curva normal. A curva normal não produz igualdade de oportunidades educacionais. Ela favorece a vantagem [dos mais favorecidos] sobre os menos favorecidos. Nós, como sociedade, temos a obrigação de fazer algo sobre isso.”

A injustiça social a que se refere o Presidente do INEP e à qual é submetida a criança antes de entrar na escola, vira, no entanto, um indicador de Nível Sócio Econômico, e não raramente é usado para mostrar que existem algumas escolas de nível socioeconômico baixo que têm desempenho alto. Ou seja, transforma-se em seu oposto: ao invés de ser colocada como um condicionador da escola que exige a mobilização de outras políticas públicas, vira um argumento contra a escola pública e seu magistério.

Ora, esta é a linha de análise do pensamento educacional liberal que acredita na redenção da miséria pelo acesso à educação e pelo esforço pessoal. Os liberais (base ideológica dos reformadores empresariais) isolam o direito de aprender dos demais direitos, já que como mercadores de ilusão seu trabalho se destina a convencer que pelo acesso a uma educação de qualidade, ou seja, pelo direito à educação, os demais direitos chegarão com o tempo, pelo esforço pessoal, vale dizer, pelo mérito que advém de tal esforço.

Para os liberais, a diferença de resultados entre as crianças é esperada, pois as pessoas são naturalmente diferentes. O liberal não pode admitir igualdade de resultados, somente reconhece a igualdade de oportunidades. Para eles, seria até autoritário querer que todas elas tivessem desempenhos iguais. O que não é dito, no entanto, é que estamos falando de ensino básico (não de opção profissional) e que os resultados da aprendizagem apesar de poderem ser diferentes devido às diferenças naturais que existem entre as pessoas, no caso das diferenças de resultados das crianças na escola de hoje elas são fundamentalmente devidas às desigualdades sociais que não têm nada de naturais. Há mais de 40 anos Benjamin Bloom formulava suas teses de “domínio integral da aprendizagem”. E Bloom não era nenhum  autoritário que desejasse padronizar as criancinhas.

Isso significa que para garantirmos que somente as diferenças naturais afetem os resultados de aprendizagem das crianças, como seria correto, é preciso igualmente impedir que elas sejam desiguais no início da escolarização por motivo de suas condições sociais. Sem esta garantia, as desigualdades escolares correm o risco de, mesmo quando oriundas de fatores sociais, serem atribuídas às diferenças naturais entre os seres humanos – naturalizando-se as diferenças sociais como diferenças naturais das crianças.

Na primeira negação, o Presidente sonegou a política do INEP, na segunda sonegou sua posição como reformador empresarial da educação. Ele não se reconhece nem como liberal e nem como reformador. Ele se considera um simples batalhador da justiça social.

Continua.

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About Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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1 Response to INEP: a dupla negação do Presidente – I

  1. Avatar de Heloisa Mazza Heloisa Mazza disse:

    Estive no debate ocorrido no congresso e achei muito profícuo. Parabéns, professor! Ressalto algo que me chamou atenção sobre o presidente do INEP. José Francisco Soares, que fez uma exposição muita segura, ficou um pouco nervoso por achar que não estava sendo compreendido e sempre fazia questão de ter direito a respostas, e até contorcia-se à mesa. Assim como ele, eu também gostaria de ser levada em consideração, e principalmente no que diz respeito à minha atuação profissional. Acho tão digno ter direito à fala que luto para que um exame baseado em dados não substitua a minha voz enquanto educadora, pois ela ecoa a voz dos alunos, da realidade, não dos números sem nome. Talvez ele tenha se sentido um pouco como se sentem diariamente os educadores: silenciados. Porém, diferentemente de nós, ele foi ouvido. Mas não sem discordância. Provavelmente seja por essa discordância entre os gestores e os profissionais da educação que se precise ir a Jomtien e a Ischeon para discutir educação, pois aqui no Brasil há barulho demais para pensar o que se fará dela. Lá se pensa, aqui só se executa, e com muito esforço, pois é só o que me pedem esses projetos em conjunto com a “sociedade civil”. Em seguida, ao ser interpelado por informações concretas de pesquisas sobre o Pacto Pela Educação, o barulho dos dados (os mesmo dados até então exaltados) começou a incomodá-lo, pois mostrava que havia ali uma grande dissonância entre esses planos e seus resultados. Como o INEP gosta de dados fornecidos pela academia, espero que esses também sejam levados em conta na hora da avaliação dos futuros projetos. Então, só nos resta esperar – sentados.

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