SP: o “neoliberalismo tardio” de João “trabalhador”

A Folha de São Paulo de hoje (12-10-16) contém na página 3, “Tendências e Debates”, dois artigos profundamente relacionados: o de cima é de Doria, e o de baixo é de José Fernandes. Aparentemente, não guardam relação, mas, de fato, o de baixo explica o de cima.

Como sabemos, o Brasil enfrenta um franco retrocesso nas opções políticas, econômicas e sociais que está fazendo. Um breve resumo desta trajetória pode ser encontrado aqui. A questão é por que? Foi pensando nisso que me deparei com o mencionado artigo de José Fernandes chamado: “A importância das regras para o comércio”. O título não sugere muita coisa, mas o conteúdo é uma confissão das razões que levam o capital financeiro a se mobilizar, no mundo inteiro, para controlar os estados nacionais – e além de ajudar a explicar o nosso golpe, de quebra esclarece o artigo de cima, na mesma página, escrito por João Doria – próximo prefeito da Cidade de São Paulo.

Refletindo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit, José Fernandes procura “tirar lições” sobre a importância das regras comerciais para as cadeias globais de valor, leia-se, regras que garantem taxas de retorno (lucro) para os investimentos realizados por grandes volumes de recursos financeirizados que circulam, em uma grande nuvem ao redor do mundo, sugando os países, como aves de rapina, tão pronto eles atendam a certas “regras” que estabelecem condições favoráveis à hiper valorização do dinheiro – agiotagem internacional é o nome correto. A opção que dão é a barbárie.

A chamada do artigo, escolhida pela Folha, não é menos significativa: “Normas seguras e adequadas são fundamentais para o mercado global e para a própria capacidade de o Brasil atrair investimentos”. Eis aí o resumo da ópera: se um país dá demonstrações de que é crível perante o mercado global, com regras claras e ações concretas que viabilizam o lucro, ele atrai investimentos – não importando se isso levará este país à tragédia humana. Mas note, isso não é uma opção dada aos governos – é uma imposição do mercado global: ou faz ou o país é quebrado pelo cerco que se estabelece pelas agências de avaliação de risco e pela ação destrutiva e golpista da agiotagem internacional, associada a seus defensores locais.

Antigamente, dava-se um golpe militar. Hoje faz-se um golpe institucional. Mas continuemos a aprender com o artigo de José Fernandes sobre o Brexit. Segundo o autor, há pelos menos cinco razões de “preocupação” para uma empresa que deseja investir no Reino Unido: 1. A manutenção de uma área de livre comércio entre a União Europeia e o Reino Unido; 2. A ausência de restrições aos investimentos; 3. O mínimo de restrições de acesso à força de trabalho (…); 4. Padrões técnicos e fitossanitários que evitem a duplicação de adaptações; e 5. Regras de transações financeiras que não gerem custos à operação.

Em resumo: livre comércio, não restrições para investimentos (inclui privatizar), não restrições para acesso a força de trabalho, padrões técnicos e regras de transações financeiras – todas elas de validade internacional e não local. Liberdade total para explorar o país ou “morte”. Diz o autor:

“Em um mundo de cadeias globais de valor, é reduzida a capacidade de os países adotarem procedimentos autônomos”.

Por que isso é importante para o capital, está dito pelo próprio autor:

“Essas normas e padrões uniformizam as regras do jogo e, muitas, concorrem para a redução dos custos de transações nas empresas e nas operações entre firmas. São igualmente fundamentais para garantir a capacidade de as firmas operarem em regime de just in time (produção integrada sem estoque).”

Esta é a razão do retrocesso. O Brasil está sendo, à força, por via de um golpe institucional, integrado às normas gerais de operação das cadeias produtivas internacionais. Para tal, é necessário um governo que não tenha compromisso com as pessoas, e sim com o mercado global – como alerta Ladislau Dowbor. É preciso um governo confiável perante os mercados globais. Isso implica em aprovar a PEC 241, na reforma da previdência, na reforma da CLT – enfim nos ajustes estruturais que Temer vem fazendo para “devolver a confiança no Brasil”, “salvar as gerações futuras”, e outras baboseiras mais com as quais procura tapar o sol com a peneira.

É um governo que representa os interesses do capital internacional, associado ao pessoal que sobrou da era Fernando Henrique Cardoso e aos empresários arrependidos de terem apoiado os governos do PT – movimento bem descrito por Tatiana Berringer.

Entre as ações que são fundamentais para que se instale a confiança está a não restrição para o capital fazer investimentos em todas as áreas, leia-se as privatizações. A privatização não só abre mercado, mas diminui a necessidade do estado arrecadar impostos permitindo isenções fiscais, e permite que a saúde das contas públicas não coloque em risco o pagamento de 500 bilhões de reais em juros da dívida. Por isso, Temer não cansa de dizer que vai “privatizar tudo o que puder” e isso inclui saúde e educação.

Pois bem. Este é o neoliberalismo atual praticado por Temer e explicitado por José Fernandes. Na parte de cima, da mesma página da Folha, encontra-se o artigo de João Doria – “o trabalhador”, como diz seu gingle de campanha. O artigo chama-se “Por que desestatizar”. Ele alude à privatização do autódromo, do Anhembi e do Pacaembu. Peças emblemáticas que marcam o caminho que seguirá sua administração. Tenta justificar a privatização alegando que vai aplicar o dinheiro em saúde e educação.

Diz ele que economizará, em quatro anos, 600 milhões para investir em mobilidade urbana, reforma de calçadas, asfalto etc. além de mais 7 bilhões de venda de patrimônio público. Tudo isso para a saúde e educação. E reforça:

“Vou insistir: todo o valor obtido com as privatizações será investido na construção de hospitais, escolas, CEUs e outros centros de serviços”.

Porém, essa fala está em completa dissonância com o que vimos no início deste post e, ademais, expressamente em contradição com o caminho que Temer está implementando para o país. A fala de Doria sugere que privatiza-se uma área não essencial, para investir em outra essencial, e cria a ilusão de que poderia não ser privatizada – mas não se compromete com isso.

Doria fala em vender para construir. Ora, se vai cometer o equívoco de privatizar a educação, seria mais inteligente fazer o que Mato Grosso está fazendo: criar PPPs para construir ou reformar escolas e não vender o patrimônio público para construir. Ou seja, além do equívoco de privatizar, ainda pratica uma privatização burra.

Você que é mais velho, já não ouviu esta história nos tempos de Fernando Henrique Cardoso? Naquela época, era preciso privatizar para que o estado pudesse investir em saúde e educação. Hoje, como vimos acima, o neoliberalismo atual quer privatizar tudo – inclusive saúde e educação. Está fora de lugar, portanto, a conversa de Doria sobre “privatizar para investir em educação e saúde”.

Estamos diante de uma enganação ou diante de um “neoliberalismo tardio” de Doria, que ainda está na fase Fernando Henrique Cardoso?

De fato, penso que é muito mais uma estratégia de marketing para adoçar a pílula. Doria admite apenas fazer construções com o dinheiro que vai arrecadar das privatizações, porque vai entregar por concessão às organizações privadas a gestão tanto da saúde como da educação (veja também aqui) da mesma forma que propõe administrar por concessão o Anhembi e o Pacaembu. Este é o método geral. Ele quer ser o Bloomberg paulistano, como já afirmou, e vai seguir os passos de seu ídolo e foi exatamente o que este fez na Cidade de Nova York – privatizar a educação.

O município de São Paulo está plenamente alinhado com os princípios da gestão Temer, cuja dimensão real está bem explicada na parte de baixo da mesma página da Folha em que Doria escreve, no artigo sobre a análise da “importância das regras para o comércio”. O artigo de cima (Doria) se explica pelo artigo de baixo (José Fernandes) e não pela “boa intenção” de Doria em privatizar para aplicar em saúde e educação.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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