A BNCC e a “salvação” dos pobres pela resiliência

A reforma empresarial da educação costuma usar duas argumentações para justificar suas receitas, incluindo a Base Nacional Curricular Comum: por uma, ela diz garantir que está procurando proteger direitos dos alunos à aprendizagem, com ênfase na garantia da aprendizagem dos mais pobres; por outra, ela cobra destes pobres que sejam mais resilientes. Com estes dois argumentos, fecha-se o círculo da tese liberal: avança na vida quem tem oportunidade e luta duramente por ela.

Os ricos estão liberados desta penitência, pois certamente, em algum momento da sua vida pregressa ou de seus familiares, fizeram jus ao que têm. Sua riqueza já estaria legitimada devido a este passado de luta. Conservadores e liberais fazem coro na defesa desta ideologia. Pelo mesmo raciocínio, fazer com que os ricos paguem mais impostos é “sacanagem” com quem lutou para ter o que tem. Distribuir renda para quem não foi resiliente, é incentivar a formação de vagabundos.

Por ela, também fica explicado porque existe o pobre: é aquele que não aproveita a oportunidade que lhe é concedida. Culpa dele, portanto. Compete ao Estado garantir oportunidades educacionais aos alunos, mas o pobre tem que entrar com sua parte e ser resiliente. Não retiramos todo o mérito do esforço pessoal, mas isso não é tudo na rota do sucesso, pois a linha de largada não é a mesma quando se trata de competir no plano social.

Estas teses, deram base a uma “nova teoria do desenvolvimento social” que diz: a questão da pobreza é algo que podemos vencer com uma nova Base Nacional Curricular Comum que, além das habilidades cognitivas, inclua também as habilidades sócio-emocionais, entre elas, a resiliência. Com a nova BNCC, agora vamos “ensinar” nossos estudantes a serem resilientes, principalmente os pobres. Não interessa a causa da pobreza: isso tem cura pelo ensino da resiliência. Por esta via, transformaremos os pobres em “empreendedores”, retirando-os do marasmo em que se encontram em suas vidas – desde que eles queiram, é claro.

Conclui-se, portanto, que a educação é a redenção da pobreza. Não há exemplo histórico de país que tenha resolvido seu problema com a pobreza por esta via, mas isso não importa, já que reconhecer qualquer outra solução levaria a um questionamento das estruturas sociais produtoras de pobreza e isso não convém. Que a pobreza de uns seja o preço que se paga pela riqueza de outros, é coisa de esquerdista. E coisa de esquerdista nem deve ser discutida, pois é mera ideologia sem base na realidade – afirmam os mais radicais.

Em reportagem do Estadão, a OCDE explica (sente-se antes de ler):

“São resilientes os alunos que estão entre 25% mais pobres do país e atingiram pelo menos o nível 3 de desempenho do Pisa, nas três áreas avaliadas – Matemática, Ciências e Leitura. Para a OCDE, o nível 3 é o mínimo necessário para que o jovem possa ter “uma vida com oportunidades de aprendizagem”.”

E nesta condição, diz a reportagem, estão apenas 2,1% dos alunos mais pobres brasileiros, enquanto que em outros países 30%, 40% dos pobres são resilientes.

É inacreditável que se queira medir a resiliência da pobreza por um teste descolado da luta diária que um aluno pobre enfrenta nos vários setores de sua vida social, a começar pelas suas condições de vida. Pela OCDE, a resiliência só existe desde que seja medida em um teste cognitivo e revele que o pobre tem nível 3 nas suas avaliações internacionais (PISA). Duvido que um aluno de alto nível social tido como resiliente aguentaria o dia-a-dia de um aluno pobre, o qual só sobrevive exatamente pela sua “natural” resiliência. Mas há uma razão para este malabarismo conceitual.

Ao criar uma medida própria de resiliência para os pobres, a OCDE introduz nela um viés de classe. E é exatamente isso que está em jogo. A resiliência “natural” de classe dominada não interessa porque pode alimentar as lutas contra a exploração. Ciente dos riscos, a OCDE quer, agora, a escola alinhada com uma tarefa mais ampla e mais incisiva, e promove um processo de substituição da perigosa resiliência dos pobres por outra, criada pela lógica dominante, à medida que as contradições sociais vão aumentando e colocando o sistema social em risco. Não é que os mais pobres não sejam resilientes. É que resiliência deles, criada nos embates sociais, não serve aos interesses dominantes. Esta nova resiliência seria, então, um atributo natural dos ricos, que a pobreza deveria imitar. Digamos: uma virtude a ser aprendida.

Manda a lógica que pensássemos em como não produzir tantos pobres, mas ao invés disso, a OCDE quer que nossa pobreza aprenda nas escolas a resiliência dos dominantes (leia-se: o conformismo social) – vale dizer, aprenda que deve aguentar firme a pobreza para que um dia possa superá-la pela educação. Aquele ímpeto de classe social explorada, que mobiliza a revolta do dominado, deve ser substituído pela resiliência dos dominantes.

Esta substituição quer ocultar que classes sociais distintas estão na base da constituição do nosso tipo de sociedade. Nela, a riqueza de uns cresce graças à pobreza de outros e esta engenharia social é a responsável pela perpetuação das classes sociais. Sem pobre, não haveria rico. O que os defensores da resiliência têm a oferecer para a pobreza é lutar para continuarem a ser pobres, mas em outra faixa de pobreza, perpetuando as relações sociais atuais e reduzindo o nível de conflitos sociais. Os ricos só aceitam que os pobres melhorem um pouco a vida se eles, os ricos, melhorarem muito mais simultaneamente.

O roteiro da propaganda é sempre o mesmo: primeiro encontra-se um ou dois alunos que se enquadrem na regra da resiliência para mostrar como isso é possível no Brasil. Depois ressalta-se um país que tenha alta resiliência para mostrar que precisamos imitar este país de sucesso. Tudo isso, é claro, “cientificamente” constatado pela OCDE.

A proposta da teoria do desenvolvimento social pela resiliência, no entanto, soa como uma promessa “post-mortem” de boa vida, para compensar o sofrimento na terra. Ela não conseguirá sobrepor-se à dura realidade da pobreza para sempre.

Leia mais aqui.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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10 respostas para A BNCC e a “salvação” dos pobres pela resiliência

  1. Guilherme TC disse:

    É isto Freitas, foste à essência da questão: um projeto de domesticação da revolta. À classe dominante não resta outra coisa senão refinar ao limite o controle ideológico que já opera em saturação no seio da vida cotidiana. Naturalizar a barbárie antes que ela produza revolucionários.

  2. Luis disse:

    Curioso que, nem a reportagem da Renata Cafardo no estadão, nem o post do professor Freitas, indicam a referência ao estudo da OCDE. Será que ele existe e faz estas afirmações? Ou isso não conta mais na era da pós verdade?

    • Faça uma leitura atenta e você encontrará o link em dois momentos do post.
      Luiz

      • Luis disse:

        Os links remetem a reportagem do estadão… que por sua vez, não fazem referência a fonte do estudo da OCDE. A pergunta é: qual o estudo da OCDE citado na reportagem da Renata e no seu post? Ou o professor propõe a crença nas suas afirmações sem qualquer possibilidade de checar fontes e referências?

      • Colega. Nao vou fazer sua lição de casa. Os links do Estadao reunem todas as publicacoes dele sobre relatórios da Ocde. Para meu post a informação do Estadão é  suficiente. Quer mais? Investigue. Abraço.

        Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.

  3. Luis disse:

    Professor, quanta prepotência e arrogância! Fiz a lição que você deveria ter feito antes de reproduzir pedaços de notícia sem checar as fontes – não há nos links do estadão sobre a OCDE nenhuma referência sobre o relatório. Mas isso pouco importa para quem está acima da necessidade de compartilhar com o leitor as bases de seus argumentos.

    • Se você tem dúvidas sobre a fonte do Estadão, compete a você checa-la. Escreva para o autor do Estadão. Agora quem chegou aqui arrogante e me ameaçando foi você. Caso volte em outros termos solicitando com gentileza e sem ameaças podemos conversar. Fora disso está conversa encerra aqui.
      Grato
      Luiz

  4. Marlon Eij disse:

    ótimo artigo professor! “A crise da educação brasileira não é uma crise, é um projeto”

  5. Uma reflexão profunda. Ser pobre nesse Brasil é desculpa pra tudo mesmo.

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