Relatório do FUNDEB: copo meio cheio, meio vazio

Na semana que passou, foi lido o Relatório da Comissão que examina mudanças constitucionais para introduzir a nova regulamentação do FUNDEB. O Relatório, em si, é um copo meio cheio e meio vazio.

O texto ora divulgado é, diga-se logo, um importante passo de uma bem sucedida articulação das forças centristas no Congresso e que conseguiram, entre outros avanços: a) que o próprio FUNDEB continuasse existindo e, agora, incluído na Constituição como um fundo permanente; b) que não incorporasse recursos do salário educação em sua constituição, gerando mais recursos para a área; c) que incluísse um cálculo de custo de qualidade mais objetivo; d) que aumentasse progressivamente os recursos da educação; e e) mudasse os critérios de distribuição dos recursos, deixando o sistema mais justo.

Embora nos tempos atuais isso não seja pouco, o resultado do Relatório sugere a figura de um copo meio cheio e meio vazio: seja do ponto de vista dos progressistas que acreditam no papel do Estado, seja do ponto de vista dos empresários educacionais (laicos e religiosos) neoliberais, que esperam pela privatização da educação.

Alguém poderia dizer que esta é a “arte da negociação” e que uma boa negociação contenta e descontenta um pouco a todos. Mas o mundo real tende a ser mais exigente. E como não há espaço vazio em política, pode-se imaginar que este copo não vai permanecer meio cheio e meio vazio, sendo impossível que estes dois campos políticos antagônicos preencham juntos o que resta do copo. Isso sugere que é razoável pensar que a grande batalha ainda não foi jogada.

No que diz respeito ao campo progressista, o copo meio cheio se deve a pelo menos dois motivos.

1) Tivemos que engolir a oficialização da meritocracia que orientará a distribuição dos recursos (ainda que, comparativamente, para uma pequena parte destes – 2,5%), a partir de avaliações que demonstrem avanço nos índices educacionais.

Não importando se tais recursos são poucos ou não, essa exigência oficializa uma forma de fazer política educacional na qual a administração federal induz políticas específicas na ponta, a partir da distribuição de recursos do centro. Além disso, esta decisão vai fazer com que as escolas continuem sendo invadidas sistematicamente por sistemas de avaliação censitarios em todo o país, os quais permitirão exercitar a meritocracia. É uma vitória significativa da direita liberal, pois estamos falando de uma ação que envolve a formação de toda a juventude, em escala nacional.

b) Também aceitou-se um silêncio comprometedor, no Relatório, sobre a destinação dos recursos ali especificados: nada se diz sobre ser este um fundo público exclusivamente para o ensino público de gestão pública, que exclua tanto o ensino privado clássico, como também o ensino público de gestão privada (ONGs e terceirizadas) – uma forma mais recente de privatização. E como há um silêncio sobre a questão, então, em matéria de lei, o que não está impedido nela, em tese, está permitido.

Admitimos que não há nada que impeça a iniciativa privada de estruturar uma rede privada de ensino com fins lucrativos ou supostamente sem fins lucrativos. Mas que o faça com o dinheiro de seus empresários e não do Estado. O FUNDEB deveria ser destinado apenas e unicamente para escolas públicas de gestão pública.

E aqui, não vale redefinir o conceito de “ensino público” em uma concepção oportunista e mais ampla como se ele, o ensino público, pudesse ser público/privado (ou seja, público de gestão privada – terceirizado) ou público/estatal (ou seja, público de gestão pública) e, em sendo assim, ambos pudessem ser considerados “ensino público” passíveis, portanto, de serem financiados com recursos públicos pelo Estado. Ao contrário disso, defendemos que público é público, submetido a controle público; privado é privado, submetido a controle privado.

E que não se argumente, também, que esta nova categoria, a escola pública de gestão privada, seja tão pública quanto a escola pública de gestão pública, devido à sua característica de ser “um ensino privado regulado pelo Estado”. Lembremo-nos de que para os empresários: o Estado não deve interferir no mercado – portanto não há que se falar de uma eventual “regulação” do Estado para o ensino público de gestão privada que lhe daria guarida para ser reclassificado como “ensino público”. Até porque, a experiência mostra, que o que é público de gestão privada, hoje, se tornará totalmente privado amanhã, financiado através de vouchers ou mais recentemente, através de contas de crédito educacional em nome dos pais – estas últimas, a nova predileção dos empresários americanos, exatamente pelo fato de deixarem as empresas mais independentes do controle do Estado do que os antigos vouchers.

A distinção entre público de gestão privada e público de gestão pública (estatal) é mera artimanha para, através de um exército de ONGs e operadoras privadas de terceirização de escolas, criar mercado à espera da instituição de vouchers e asfixiar lentamente o financiamento do ensino público de gestão pública.

Sabemos que os tempos estão favoráveis à privatização, ou seja, à ampliação do financiamento público tanto para a iniciativa privada laica, como para a iniciativa privada religiosa. Ambas contam com representantes fortíssimos no Congresso, no Conselho Nacional de Educação e agora, temos um Ministro da Educação oriundo da iniciativa privada religiosa. Temos razões para achar que este silêncio serve perigosamente a ambos os lados.

Possivelmente, o lado progressista, sabedor da desigualdade de forças, evita o tema com apoio de liberais centristas; o lado contrário, neoliberal, não abre uma divergência de imediato, deixa a destinação de recursos vaga no Relatório, e assim pode retomar a matéria quando quiser e talvez com menor esforço em outro momento. Isso poderia ocorrer quando se regulamentar a emenda constitucional resultante do Relatório na forma de lei ordinária ou até mesmo, na próxima semana, durante a votação do Relatório, no plenário da Comissão, através de emendas.

E como para a educação pública de gestão pública todos os ganhos que estamos tendo agora só se concretizarão, na prática, se houver uma definição de que tais recursos, agora ampliados e garantidos constitucionalmente, cheguem até ela, então temos, aí, a figura do copo meio cheio/meio vazio. Não há, até agora, tal garantia duradoura.

Muitas vezes, preferimos postergar decisões mais radicais e facilitar a negociação. Nem sempre dá certo depois, já que as propostas mais avançadas, de maior radicalidade, tendem a ser descartadas durante a negociação. Com  isso, corremos o risco de nos tornarmos parte do problema e não da solução.

Às vezes, é melhor dar a batalha e mobilizar – especialmente se a luta é longa – e obrigar todos os envolvidos a colocarem as cartas na mesa. Da maneira como está o Relatório, vamos passando por coautores. E isso não é bom, se considerarmos que, depois, os recursos podem vir a ser acessados pela iniciativa privada colocando a educação pública de gestão pública na rota da sua extinção, mesmo com todos os eventuais ganhos deste momento.

Também para os empresários (laicos e religiosos), os ganhos conquistados no Relatório são importantes – por mais que possam desagradar a Paulo Guedes, por envolverem mais gastos para o Estado. Mesmo Paulo Guedes, um neoliberal ortodoxo, pode ver os ganhos do Relatório apenas como uma transferência gradual de recursos do orçamento da educação pública para a iniciativa privada, e não necessariamente como um aumento de gastos a longo prazo.

Os neoliberais aprovam gastos que visem a criação de um mercado educacional, com o que pensam livrar-se, depois, da máquina estatal correspondente ao que foi privatizado. É por isso também que defendem uma renda básica universalizada, já que não querem reforçar o papel do Estado na administração direta de políticas públicas sociais e, sim, colocar tudo na mão do mercado. Por um outro angulo, Isso também agrada a conservadores anti-establishment, de olho no crescimento das escolas religiosas e no homeschooling (ensino domiciliar).

Os empresários precisam tanto da estabilidade jurídica na distribuição de recursos do Estado (financiamento carimbado via Constituição), como também dos próprios recursos em si, os quais são vitais para estabelecer um mercado educacional inicial e criar escala. Portanto, os aparentes ganhos obtidos nesta luta, até agora, não opõem os lados em conflito (progressistas e neoliberais) – desde que o Relatório pelo menos continue vago e nada se diga sobre a destinação final dos recursos.

Em algum momento, e preferiríamos que fosse agora, os progressistas terão que defender a garantia de recursos do FUNDEB exclusivamente destinados para a escola pública de gestão pública.

Os empresários, no entanto, lutarão para que os recursos do FUNDEB financiem suas empresas educacionais, assegurando que estados e municípios possam contratá-los nos processos de terceirização de escolas ou permitindo que acessem os recursos públicos através de vouchers ou contas de crédito educacionais, lastreados no FUNDEB.

O que agrada a um, desagradará (ou deveria desagradar) ao outro. A questão é: quem vai encher de fato o copo que agora ainda está meio vazio para ambos. A julgar pela experiência de outros países, esta será uma longa batalha. Portanto, deveríamos explicitá-la agora e nos mobilizarmos para ela.

Baixe aqui o Relatório da Dep. Profa. Dorinha.

Baixe aqui o powerpoint da exposição do Relatório.

Para entender o FUNDEB acesse aqui.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
Esse post foi publicado em Escolas Charters, Homeschooling, MEC sob Bolsonaro, Meritocracia, Privatização, Responsabilização/accountability, Vouchers e marcado , , , , , . Guardar link permanente.

2 respostas para Relatório do FUNDEB: copo meio cheio, meio vazio

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