ENEM em debate

Toda vez que os reformadores falam em melhorar uma de suas ideias é preocupante. Não raramente, o que para eles é uma melhoria, para nós é um aprofundamento de decisões sem respaldo nas tendências das pesquisas. Isso advém do fato de que os reformadores têm duas crenças: uma na avaliação, em si, não importa do que; e outra no progresso da tecnologia. Assim, qualquer erro de concepção, dificuldade de implementação, efeito colateral etc. é tratado como uma questão de melhorar a técnica usada. A velha crença acrítica no progresso da ciência que confunde objetividade com neutralidade.

Na verdade, há outras crenças, mas abordar todas seria muito longo, como por exemplo, a crença de que todos os problemas apresentados na prática pelas suas teorias se devem a que estas não foram bem aplicadas ainda. Também tem aquela de que se você é contra uma de suas ideias tem que apontar alternativa, mas a “alternativa” tem que levar aos mesmos objetivos, ou seja, tem que ser uma maneira diferente de fazer o mesmo proposto por eles.

Quando os Estados Unidos naufragou com o No Child Left Behind, o presidente Bush, pai do programa, deu uma entrevista dizendo que ele havia sido aplicado pela metade e que havia faltado mais testes e mais responsabilização. Quando a Argentina naufragou com o neoliberalismo, os defensores disseram que ela não havia feito a lição de casa direito. E por aí vai. Um reformador é antes de tudo guiado pela fé.

Agora os jornais Folha de SP e Estadão, arautos dos reformadores empresariais, começaram a criticar o ENEM – e até estão fazendo uso de uma análise do próprio INEP.

Antes da “versão vestibular” do ENEM, ele destinava-se somente a avaliar o ensino médio. Com o atrelamento do ENEM ao ingresso dos estudantes nas Universidades, o exame começou a ter que servir a dois senhores: como avaliação do ensino médio e como vestibular para a Universidade. Foi criticado por isso, mas não adiantou. Agora, os arautos dos reformadores aceitaram parcialmente a crítica e a estão repercutindo com atraso de anos em suas mídias. Por que será?

Falam até em estreitamento curricular. É um fenômeno bem descrito na pesquisa educacional o efeito do “estreitamento curricular” gerado pelos exames. Já tratei disso aqui e há até uma seção neste blog que reúne a literatura disponível sobre isso. A Folha de SP menciona este efeito.

“No plano da política pública, a prova funcionaria como ferramenta de avaliação do ensino médio. Como tal currículo inexiste, todavia, deu-se uma inversão de papéis. O exame ocupou este vácuo, transformando-se na prática, em um guia usado pelas escolas para selecionar o que será ensinado aos alunos.”

Parece que estaríamos todos de acordo com a análise, não é verdade? Engano.

Primeiro, quando os reformadores acham um problema com suas políticas de avaliação e responsabilização, eles não pensam em caminhar na direção frequentemente recomendada pela pesquisa educacional. Não. Eles apenas recuam ao nível do diagnóstico para alargar a base de apoio para em seguida, aprofundar a mesma solução agora com algumas correções. Uma espécie de “versão 2.0” do mesmo.

Segundo, o ENEM com ou sem dupla finalidade não é um bom instrumento nem para avaliar o ensino médio e nem para selecionar para a Universidade. Ele está marcado, entre outras coisas, pela necessidade de responsabilizar e não de avaliar. Toda a teoria da avaliação é contra decisões que afetam a vida das pessoas baseadas em uma única medida – ainda mais uma prova de múltipla escolha. Só isso seria suficiente para o governo e o INEP ficarem vermelhos ao pôr em prática esta sistemática.

Terceiro, como já disse por aqui, o ENEM é um atentado ao consumidor, digno de se acionar o Procon, se pudéssemos. Não são divulgados dados que mostrem a “saúde da produção do instrumento”. E no entanto estamos excluindo jovens das Universidades por centésimos nas notas classificatórias para ingresso na Universidade. Mais vergonha. O ENEM é uma verdadeira bomba relógio.

Quarto, o ENEM tem um tom de exame voluntário que incomoda os reformadores. Para eles deveria ser obrigatório e considerado como condição para concluir o ensino médio e receber o diploma. Até Haddad andou acreditando nisso quando passou pelo Ministério.

Quinto, qualquer que seja o exame, com ou sem currículo estabelecido, produzirá o efeito do estreitamento curricular. Mas não é isso que incomoda os reformadores. O que está de fato incomodando é que eles querem rever o currículo do ensino médio porque querem alinhar o ensino médio com a necessidade empresarial de aumentar a produtividade do trabalhador brasileiro. E agora, lembraram-se desta crítica para ampliar a base de descontentamento e justificar a proposta de Currículo Nacional Comum que está em discussão no país.

Ora, mesmo que se redefina o atual currículo, um exame como o ENEM não vai dar conta de incluir todo o conteúdo que é ensinado no ensino médio. Continuará a fazer escolhas sobre o que avaliar e continuará a produzir estreitamento curricular nas escolas. Mas, note, se o “currículo for bom” – ou seja, contiver o aval dos reformadores – então acreditam que o estreitamento curricular pode ser positivo.

Sexto, note-se a sutileza da crítica feita pela mídia. Nenhuma palavra é dita contra o INEP e até sua nota técnica sobre certificação  passa, agora, a ser sábia. Isso se deve a que o atual presidente do INEP está próximo do pensamento dos reformadores e portanto é uma pessoa crível para a mídia. Fala-se até em autonomia do órgão frente ao MEC, curiosamente alardeada também pelo Estadão durante as eleições.  A crítica, então, vai sendo dirigida “ao governo” e não ao INEP. Bem feito – quem sabe o governo aprende.

Ou seja, a crítica da mídia ao ENEM pode sugerir unanimidade, mas não é bem assim.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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6 respostas para ENEM em debate

  1. Silvio Benitez disse:

    o estreitamento do curriculo é um dos efeitos colaterais da implantação da meritocracia vinculada ao resultado do IDEB em Foz do Iguaçu PR (primeiro lugar no IDEB 2011) que não tem nada a ver com qualidade da educação só a melhoria de índice para fins políticos eleitoreiros.

  2. Pingback: ENEM EM DEBATE | Grupo de Estudos e Pesquisa em Avaliação e Organização do Trabalho Pedagógico

  3. Elza Helena Soares disse:

    Eu acredito que a discussão sobre possíveis modelos de competências é positivo porque educação para o século XXI com este nome ou não porque até agora nós sabíamos em que ambiente o nosso aluno iria funcionar. As profissões, as possibilidades de interação social e aspirações pessoais eram mais ou menos bem-definidas. Mas hoje lidamos com educandos que poderão vir a exercer alguma profissão que ainda nem existe e utilizar, se não inventar, um tipo de tecnologia que a gente nem conhece ainda. Neste sentido não se trata de usar a tecnologia, mas de desenvolver ferramentas mentais que deixarão um resíduo cognitivo que ele poderá utilizar em qualquer ambiente que requisite este tipo de habilidade. Não significa abolir o currículo ou mudar os conteúdos, trata-se de mudar o jeito de pensar, o jeito de fazer, as ferramentas de trabalho e o jeito de viver no mundo. Não se trata de responder a uma exigência do mercado, mas sim de levar o aluno a ser capaz de se comunicar e trabalho em equipe em um ambiente distribuído, fluido que exige protagonismo, criatividade e inovação. Exige que o aluno aprenda a aprender sozinho e que tenha responsabilidade com resultados. Eu li todos os documentos do Projeto DeSECo (http://www.deseco.admin.ch/bfs/deseco/en/index/02.html) e examinei os currículos de Ed. Para o século XXI da Cingapura, da ATC21S e da Partnership for 21st Century Education e não vi nada de novo em termos de conhecimentos. Todos trabalham com Bloom, Vygotsky, Piaget, Ausubel e toda a base teórica (que é imensa) remete a Dewey que foi o grande mentor do Anísio Teixeira e de Paulo Freire. Então não estamos falando de nada tão diferente assim. O que muda é o jeito de usar estes conhecimentos na prática. A grande vantagem que eu vejo é a aplicação super prática que tem.

  4. Elza Helena Soares disse:

    Apenas divulgando para quem interessar possa: http://www.latam.bettsummit.com/files/ptbett_latam_conference_brochure.pdf. Trata-se do Summit de Liderança Educacional da América Latina no Rio de Janeiro na próxima semana.

  5. Marilya disse:

    Encontrei diversos erros nos microdados do ENEM, disponibilizados pelo INEP. Como, por exemplo, informações trocadas (notas das escolas federais no enem se referem as notas das escolas escolas estaduais), erros de enunciados das perguntas (prova do ano de 1999 e 2000 se refere ao ano de 2001), o número de inscrições nos microdados do enem são diferentes do que são divulgados nos documentos, e por aí vai. O pesquisador não pode confiar nos dados.

  6. Jose Elias disse:

    Minha opinião pessoal do Enem.

    Medir saberes sempre foi uma tarefa das mais desafiadoras. Como se mensura o quanto um indivíduo possui de informação útil em sua mente? Aliás, como se pode aferir o que vem a ser “informação útil”? E como hierarquizar alunos e instituições de ensino de modo a classificar quem detém mais ou menos conhecimentos? Impossível ou não, esta missão é abraçada cotidianamente por nossa sociedade competitiva, sendo aplicada nas mais rotineiras situações, desde uma entrevista de emprego até uma eleição para presidente, que nada mais é do que justamente escolher quem consideramos mais capacitado a utilizar seu repertório intelectual em benefício de uma nação. O ENEM, criado em 1998 pelo então Ministro da Educação Paulo Renato Souza, foi concebido para trabalhar este desafio em um campo, ao mesmo tempo, bastante amplo e específico: avaliar a qualidade do ensino médio no país. Há um enorme mérito nesta ousada iniciativa, principalmente por sua intenção de expor a real situação da educação no Brasil. Porém, uma avaliação tão audaciosa em termos geográficos e tão complexa em termos de critérios não estaria isenta de gerar brechas para fraudes ou oportunistas, conforme se identificou por diversas vezes e em variadas localidades. Enquanto algumas instituições sérias se ocupam de analisar os resultados para aprimorar sua qualidade, seus profissionais de ensino e seus recursos pedagógicos, outras se incumbem de mascarar sua própria situação, criando até mesmo novos CNPJs dentro da mesma empresa, fazendo seleções de alunos de bom desempenho com o intuito de criar um factoide, um score que não expressa a real qualidade de seu ensino. É por isso que os pais devem estar atentos a uma leitura mais aprofundada dos resultados do ENEM, não se limitando às pontuações, mas investigando e interpretando outros critérios que, infelizmente, o Exame Nacional do Ensino Médio não contempla. O ENEM pode medir o quanto um aluno entende de geometria, mas não consegue abranger a análise do espaço físico que a instituição de ensino lhe disponibiliza no dia a dia. Ele pode identificar se um estudante compreende os fundamentos da biologia, mas não tem como averiguar se ele preza pelo meio ambiente. Pode descobrir se um aluno sabe que Base de Arrhenius é toda substância que em solução aquosa libera como único ânion o íon OH- que é denominado de hidróxido, mas não tem como saber o quanto este mesmo aluno domina a química da solidariedade, da cidadania e do respeito à sociedade. Pode atribuir uma nota para língua portuguesa, mas não tem como entender se o avaliado fala o idioma da ética, do caráter e do combate às desigualdades. Não estamos aqui querendo de modo algum desqualificar este ou qualquer outro exame que venha a tentar avaliar a qualidade da educação em nossas instituições de ensino. Mas estamos, sim, afirmando que esta mesma qualidade precisa ser analisada pelos pais e comunidade de maneira mais ampla e investigativa. A escola que realmente ostenta um compromisso educacional sério jamais promoverá qualquer tipo de segregacionismo com relação a alunos que demonstrem qualquer dificuldade de aprendizado, pelo contrário, é justamente com este público que ela deverá se mostrar mais atuante e interessada em fazer o seu melhor. Para que a imprensa não mais faça matérias sobre médicos que colocam o ganho financeiro antes da responsabilidade com a vida de seus pacientes, sobre engenheiros que colocam a propina à frente do benefício da ponte que será útil à comunidade e, enfim, sobre profissionais que, no passado, pontuaram favoravelmente em escolas que só se preocuparam com avaliações que pudessem ser medidas em números e não em valores, é necessário que sejamos cúmplices de uma causa maior. Uma causa que englobe qualidade de vida, dignidade e sabedoria acima de tudo. Como diria o grande ator e diretor norte americano Clint Eastwood, “está na hora de pararmos de perguntar que mundo deixaremos para nossos filhos e passarmos a perguntas que filhos deixaremos para o mundo”.

    José Elias Castro Gomes
    Casado há 10 anos com Ana Carolina, pai do Edu Elias, de 5 anos, e da Any, de 2 anos (e, se Deus quiser, de mais 2 filhos em um futuro próximo).

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