Fechar escolas para quê?

O Prof. Marcos Francisco Martins da UFSCar publica hoje artigo no Correio Popular, jornal da cidade de Campinas, refletindo sobre o processo de reorganização das escolas do Estado de São Paulo. Segue abaixo reprodução do texto autorizada pelo autor.

Fechar escolas para quê?

Em países com alto índice de desenvolvimento humano, assiste-se ao fechamento de presídios e não de escolas. Nas nações que superaram tragédias, como guerras, a abertura e manutenção de escolas é uma constante histórica, que implicou padrão civilizatório mais desenvolvido, inclusive com redução da violência. Então, para que fechar centenas de escolas, como quer o projeto de “reorganização” da rede de ensino oficial do governo de São Paulo?
Anunciado pela mídia em 23/09, o projeto pretende separar as escolas em três ciclos (1º ao 5º ano; 6º ao 9º; e Ensino Médio) e fechar unidades escolares, com os seguintes argumentos: a) escolas com apenas um ciclo têm melhor rendimento nas avaliações; b) adequar a rede à nova composição etária da população paulista (segundo a Secretaria, a rede perdeu 2 milhões de alunos entre 1998 a 2015); c) favorecer o “foco” no Ensino Médio.
A iniciativa foi formulada nos gabinetes do Palácio dos Bandeirantes, sem transparência e sem diálogo com os diretamente afetados: professores, alunos e pais, o que contraria o preceito da “gestão democrática” presente nos artigos 3º, 14 e 56 da LDB (Lei 9394/96). Além disso, na campanha eleitoral, nunca o governador registrou a pretensão de fechar escolas, o que é um reprovável e anti-democrático artifício eleitoreiro.
Em relação à alegação de melhoria do rendimento, não foram apresentados dados científicos que demonstram que escolas com apenas um ciclo têm mais qualidade. Sobre o “encolhimento” populacional, ele ocorre em um contexto no qual o governo deu 0% de reajuste aos professores na data base, após longa greve, e fechou 3.390 salas da educação básica no Estado na última década.
Não é preciso esforço científico para demonstrar as consequências que virão: superlotação de salas e demissões que, segundo a APEOESP, atingirão 20 mil professores, sem mencionar as de trabalhadores terceirizados que atuam hoje em unidades a serem fechadas. Aliás, a Secretaria tem de dados para reprovar a “reorganização”, pois ela foi experimentada, sem sucesso, em 1995 pelo mesmo grupo que está no poder, gerando milhares de demissões, sem melhoria da qualidade da educação e com prejuízos à vida da comunidade.
Agora, ela é retomada, entre outros, com o objetivo de focar o Ensino Médio como formador de competente mão de obra, conforme a Meta 22 do Plano Estadual de Educação (PEE) enviado à Assembleia Legislativa, objetivo melhor perseguido com privatização e/ou terceirização, facilitadas pela separação dos níveis de ensino.
Se o “encolhimento” da rede é fato, perde-se a oportunidade para investir no que realmente as pesquisas têm apontado como o nó górdio do sistema educacional: redução do número de alunos por sala e da jornada de trabalho dos docentes, com readequação dos espaços físicos, os quais poderiam ser destinados a diferentes iniciativas educacionais.
Assim, o que está em jogo não é a qualidade social da educação, como processo de formação humana integral, como bem simbólico garantido constitucionalmente como um direito, mas um projeto que entende a educação como mercadoria, algo característico da concepção dos que têm governado São Paulo nas duas últimas décadas, com lastro para outras regiões do País, como o Paraná, que adota o mesmo projeto e também quer fechar escolas.
Essa prática é conhecida no meio empresarial como “downsizing”: enxuga-se a empresa para torná-la menos custosa e mais atrativa à venda. Implantado na educação, revela a concepção dos “reformadores empresariais”, que estão estrategicamente articulados e direcionando a educação paulista, tanto que seus representantes mantiveram (consultoria McKinsey) e mantêm (Falconi) escritório dentro da Secretaria Estadual de Educação. Assim orientada, prepara a rede para transformar alunos em clientes, sistemas didáticos oficiais em consumidores de cursos apostilados produzidos pelas mesmas consultorias em muitos casos.
A finalidade é implantar na educação a mesma lógica do mundo empresarial, para que atenda aos interesses de aumentar a produtividade e a lucratividade do capital, em baixa no sistema econômico mundial. Por isso a insistência com a meritocracia, metas, avaliação externa por testes padronizados, alteração e flexibilização de currículos (cf. a base nacional comum), bonificação etc., que revelam a preparação dos sistemas para a privatização e/ou municipalização, como está na Meta 21 do PEE, relativa ao ensino fundamental.
As orientações a essas iniciativas vem de agências internacionais, como o Banco Mundial, bem como de práticas estrangeiras, como as de gestão terceirizada para OS (Organizações Sociais) ou em parceria com a iniciativa privada, modelo experimentado nos EUA, mas que se revelou um fracasso assumido até mesmo por quem os formulou e implantou, como Daine Ravitch, ex-Secretária Adjunta de Educação dos governos Clinton e Bush, e mesmo por Obama, que anunciou recentemente a intenção de rever o sistema educativo dos EUA.
São legítimos, pois, os atos em repúdio à “reorganização”, que se espalharam pelo estado, pois eles indicam resistência em assumir a educação como mercadoria, como a serviço do capital, e pretendem retomá-la como um direito, necessário à formação humana integral.”

Publicado no Correio Popular de Campinas, 03/11/15, p. A-2

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
Esse post foi publicado em Escolas Charters, Privatização, Reorganização escolas em São Paulo, Responsabilização/accountability. Bookmark o link permanente.

2 respostas para Fechar escolas para quê?

  1. Rosana Prado Biani disse:

    Publico, como comentário, excertos de minha dissertação de mestrado (BIANI, R.P. A Progressão continuada rompeu com mecanismos de exclusão? (2007). Campinas, SP: FE/UNICAMP.) discutindo a lógica capitalista na escola

    (…)
    Nas gestões empresariais, a qualidade da qual se fala é aquela que garante a produtividade, a rentabilidade, o máximo de benefícios, na forma de lucro, e o mínimo de custos. No campo educacional, os discursos da qualidade estão assumindo

    […] o conteúdo que este conceito possui no campo produtivo, imprimindo aos debates e às propostas políticas do setor um claro sentido mercantil de consequências dualizadoras e antidemocráticas. No campo educativo, o discurso da qualidade foi assumindo a fisionomia de uma nova retórica conservadora funcional e coerente com o ataque feroz que hoje sofrem os espaços públicos (democráticos ou potencialmente democráticos), entre eles, a escola das maiorias (GENTILLI, 1997: 126).
    (…)
    Importar a teoria da qualidade empresarial para o campo educacional implica pensar a educação, também, em termos da relação custo x benefício havendo, então, a necessidade intrínseca do controle da qualidade que se centra, principalmente, nos resultados ou nos produtos. A ideia é o retorno satisfatório dos “investimentos”, num prazo curto e com mínimos riscos.
    Na educação, o controle de qualidade passa a ser feito pelas avaliações, em vários níveis, vistas como meio para se obter melhor padrão de qualidade na educação. No discurso do Banco Mundial para a melhoria da qualidade da educação é possível perceber a importância da relação custo – benefício:

    A relação custo-benefício e a taxa de retorno constituem as categorias centrais a partir das quais se define a tarefa educativa, as prioridades de investimento (níveis educativos e fatores de produção a considerar), os rendimentos e a própria qualidade (TORRES, 1996: 138).

    A ênfase na relação custo-benefício, presente nas reformas educacionais impostas pelo Banco Mundial à educação no Brasil, reforça a ideia de qualidade de produtos e não de processos, ou seja, centra-se no controle do custo (investimentos em livros didáticos, infraestrutura – como as salas ambientes, computadores, televisores e vídeos, etc.) e do benefício (anos de escolaridade, diplomação) em detrimento da qualidade da instrução e da formação oferecidas.
    Nesse sentido, as avaliações serão para verificação de resultados, não levando em conta em que condições eles foram produzidos – as condições anteriores à escola, por exemplo. Enfatiza-se o aspecto quantitativo em detrimento do qualitativo, sendo que a diretriz principal passa a ser o barateamento dos custos com a educação pública (do mesmo modo como uma empresa que maximiza os custos cortando gastos) que gere, no entanto, altos índices de aprovação, o que se tornou possível pelas políticas implantadas pelo Governo – principalmente os ciclos e a progressão continuada.
    Essas políticas não alteraram as lógicas do tempo, do espaço, da avaliação, enfim, da cultura escolar, o que as levou, em nosso entender, a incidirem negativamente sobre a qualidade da aprendizagem (que deveria ser o real benefício a ser maximizado em educação).
    As propostas do Banco Mundial identificam-se com as propostas neoliberais, cujas lógicas são a do mercado, da competição, da exclusão, ou, resumindo, da manutenção da ordem social. Em educação, o neoliberalismo “é a tentativa de transplantar para a escola pública formas de gestão empresarial ou que se mostram mais adequadas para as organizações que visam lucro” (AFONSO, 2003: 44).
    Nessa lógica, o Estado atua como avaliador dos produtos – e, consequentemente, das instituições educacionais que o produziram. Ambos – produtos e produtores – deverão estar de acordo com as exigências impostas pelo Banco Mundial as quais estão em consonância com os interesses do modelo de produção capitalista vigente.
    Fiel a esta lógica, o sistema ao avaliar suas escolas, o faz na perspectiva positivista da avaliação, valorizando o produto e exercendo controle de qualidade para garantir uma pseudo homogeneização das condições de oferta do ensino. Assim, o discurso da equidade e a democratização do acesso à educação formal configuram-se como uma realidade. E a questão dos baixos resultados de desempenho é explicada como um problema ora ligado à falta de qualidade dos docentes ora ligado ao baixo capital cultural dos estudantes (SORDI e MALAVASI, 2004: 110).
    (…)
    Ao cooptar-se com a lógica do capitalismo, a escola cumpre uma função social coerente com o conjunto das relações sociais de produção da sociedade capitalista, na qual está inserida, relação esta que, em nosso pensar, promove e mantém os processos de produção de desigualdades e exclusão em detrimento dos processos de inclusão e emancipação pessoal e social.
    (…)
    Tais afirmações vêm ao encontro do que queremos ressaltar: houve reforma, mas não mudança. Nossa afirmação coaduna-se com a de Arroyo (1999: 156), segundo a qual:

    Tivemos e temos inúmeras reformas e políticas que quase nada inovam na lógica estruturante do nosso sistema escolar nem na concepção utilitarista e credencialista de ensino. […]. [O que há são] retoques, mais nominais do que reais […]. Em realidade, essas administrações estão brincando de mudanças apenas trocando os nomes.
    (…)
    Acreditamos que transformações não ocorrerão “de cima para baixo”, pois aqueles que detêm o poder dificilmente agirão “contra si próprios”.
    _____________

    E assim… Estamos diante de mais uma reforma na qual se reforma para manter e não para mudar.

  2. Mistical Si disse:

    Gostei muito da análise. Direto ao ponto. Era esse o nível de argumentos que eu esperava no Roda Viva da Cultura… o que vimos foi uma total perda de tempo, repetição de discurso para justificar o injustificável: FECHAR escolas. Surreal alguém apoiar isso, ao invés de diminuir o número de alunos por sala em todas as escolas (nesse caso seriam necessárias MAIS escolas ao invés de menos). Não é a reorganização em ciclos o problema (aliás, se fosse feita com o verdadeiro intuito de realmente equipar as escolas de acordo com as necessidades de cada faixa etária, seria deveras interessante).

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