Anotações sobre a conjuntura – Parte II

Continuação de post anterior.

Estas contradições geopolíticas apontadas na Parte I somam-se a outras já existentes e, no limite do nosso tempo nesta live, apenas podemos fazer uma enumeração rápida das suas dimensões, para completar o quadro do emaranhado perigoso nos quais se encontra a humanidade.

A dimensão 1 diz respeito à lógica do capital que, como advertia Schumpeter nos idos da década de 40, terá problemas não pelo seu fracasso, mas pelo seu próprio “sucesso”.

Esta lógica direciona a humanidade para o objetivo de ganhar dinheiro para ganhar mais dinheiro, indefinidamente, e nenhum sistema social pode operar por acumulação permanente sem destruir os seres humanos e o ambiente.

A dimensão 2, refere-se à contradição estrutural entre o aumento do capital investido em tecnologia mais sofisticada na produção, e a consequente redução do capital investido em mão de obra, a qual é substituída por novas tecnologias, gerando menos postos de trabalho ou postos mais simplificados e mais baratos – como mostrou Marx[1] – mas que a longo prazo produzem uma queda tendencial nas taxas médias globais de lucro, que pode ser adiada se fatores contrariantes forem acionados, mas que não pode ser postergada para sempre[2].

Isso se deve a que é o trabalho vivo que pode gerar valor e as tecnologias disponíveis têm em seu interior trabalho morto, materializado em hardware ou software, e diminuem ou precarizam a participação do trabalho vivo na produção. A competição e a pressão pela acumulação permanente de valor, acelera esta mudança na composição orgânica do capital.

Para se perpetuar, o capital é obrigado, então, a pôr em marcha uma série de medidas que contrariem esta tendência à queda das taxas médias globais de lucro, entre as quais, para os nossos propósitos, destacam-se: a intensificação do trabalho; a imposição de salários mais baixos; a superpopulação de trabalhadores desempregados ou subempregados disponíveis para trabalhar por salários menores – enfim a precarização extrema da força de trabalho.

Para além das polêmicas que esta dimensão gera[3], o que importa destacar aqui é que tais ações de sobrevida, no entanto, acabam por aumentar as crises sociais e carregam alto poder de mobilização social.

Note-se, então, que a introdução de novas tecnologia no processo de trabalho é uma necessidade intrínseca às crises do capitalismo. É pela introdução de novas tecnologias que ele impulsiona a economia e reduz temporariamente o impacto das crises. Em contraposição, na outra ponta, aumentam as contradições sociais, a miséria, os conflitos sociais e, com isso, as possibilidades de mobilização social. Isso explica, em boa medida, as alianças que estamos assistindo entre o neoliberalismo e os conservadores, com a finalidade de segurar as mobilizações. Desde o século XIX o capital recorre à aliança com os conservadores quando se encontra em apuros.[4]

Esta crise também se manifesta na superprodução acumulada: precarização e baixos salários permitem mais lucro, mas diminuem o poder de compra dos trabalhadores e o seu consumo e geram endividamento e queda na demanda; maiores salários, porém, aquecem a demanda e aumentam o consumo, mas derrubam os lucros e favorecem o movimento dos trabalhadores por melhores condições de trabalho.

Não é razoável supor que a área da educação não sofrerá, portanto, o assédio de novas tecnologias – especialmente à medida que vai sendo ampliada a privatização da educação. Igualmente, também não é razoável supor que a educação passará incólume ao longo dos conflitos sociais que crescerão.

A dimensão 3, refere-se ao papel do Estado, o qual, pelo menos até recentemente, era chamado a intervir para prover alguma compensação à permanente exploração a que os trabalhadores são submetidos.

Tratava-se de aliviar as tensões sociais. No entanto, mesmo o pouco que se fez nestes momentos, acabou por levar a um aumento dos custos fiscais decorrentes desta estratégia, agravado pelo baixo desempenho do capital global.[5]

O esgotamento da social democracia que exercia este papel em alternância com o neoliberalismo, criou nova contradição: uma maior inclusão aumentava o tamanho do Estado e exigia mais impostos, derrubando a competitividade e os lucros.

O inverso, a não inclusão, diminuía o Estado, reduzia impostos, permitia atender às demandas capitalistas, mas gerava mais conflito social, em um quadro em que o capitalismo precarizava constantemente a força de trabalho a cada inovação tecnológica que introduzia para postergar suas crises.

A “corrida para o mais barato” implicou em externalização de custos, desoneração do capital e diminuição de impostos, desregulamentação de mercados, o que é incompatível com financiar a inclusão.

Isso significa que a pressão para a diminuição do Estado redefinirá o papel do Estado e o próprio conceito de democracia, à medida que a crise avance. Haverá uma tendência a oficializar, pela meritocracia, a naturalização da exclusão social e isso também atingirá a área da educação.

A dimensão 4, diz respeito aos danos que o capital faz à ecologia global pelo processo de acumulação ilimitado e pela externalização crescente do custo ambiental. Aqui, nosso tempo acabou e as ações necessárias são emergenciais. À medida que a acumulação cresce, cresce igualmente o garimpo de matérias primas, a mineração, a extenuação da terra por fertilizantes, o desmatamento, entre outras agressões sistemáticas à natureza.[6]

Finalmente, a dimensão 5, é uma decorrência da dimensão 2, uma crise na própria geração de valor, e aponta para as consequências da introdução da inteligência artificial e das novas tecnologias. Randal Collins[7] põe em evidência a crise de empregos, agora na classe média, em virtude da inteligência artificial e dos robôs.

A introdução de IA e a robotização também atingirão a educação de forma generalizada com diminuição de postos de trabalho e rotinização de atividades.[8]

Do conjunto desta crise, derivam-se certas reações e movimentos no campo político:

1. A radicalização da proposta sócio-política neoliberal[9] em substituição ao liberalismo centrista que emergiu no século XIX[10] e a popularização de um liberalismo mais radical ainda, conhecido como libertarianismo[11] que propõe a liquidação completa do Estado e a inserção direta das atividades humanas em processos concorrenciais plenos.

Em meio à crise, por ora, a estratégia tem sido, por um lado, empurrar as crises para frente e, por outro, blindar as elites dos efeitos financeiros e políticos destas, através do restabelecimento das teses do liberalismo clássico[12], fortalecendo um contrato social meritocrático, construído dentro de uma lógica que tem sido chamada de neoliberal, e cujas bases foram lançadas nos anos 20 do século passado no entre guerras e tornaram-se hegemônicas nos anos 70[13]. Este caminho, depois de 40 anos nos países centrais, não tem conseguido equacionar os problemas contemporâneos do capital[14].

2. O segundo efeito diz respeito ao fortalecimento das vertentes do conservadorismo que visualizam, na crise do liberalismo[15], possibilidades de retomar suas teses, e se estruturam ao redor do mundo (taticamente em aliança com o neoliberalismo/libertarianismo) com acesso a governos importantes.[16]

Uma aliança de ocasião, eleitoral, entre conservadores e neoliberais tem garantido capacidade política para obliterar o avanço de propostas alternativas ao neoliberalismo e ao próprio capital.

3. O terceiro efeito diz respeito ao desenvolvimento de um horizonte negativo com o fortalecimento do movimento pós-moderno, que ao recusar os projetos históricos disponíveis para combater o capital, remove a categoria da contradição, e cria um vazio que favorece a ocupação do espaço político pelo conservadorismo pós-moderno[17].

O movimento pós-moderno foca a atenção nas consequências culturais da crise do liberalismo, no “fim da verdade” e no “relativismo”, deixando de fora da análise as causas estruturantes da própria crise do capital. A direita conservadora aprendeu bem.

Temos que cobrar dos fundadores do movimento pós-moderno a destruição ou desconstrução da verdade, que agora vemos se transformar em narrativas circunstanciais, quando não em recorrentes fake news.

4. O quarto efeito, este mais promissor, é o aumento do interesse na compreensão das crises cíclicas e estruturais do sistema do capital, um renovado interesse nos estudos de Marx e uma reavaliação de projetos sociais alternativos ao capital, especialmente as teses socialistas.

Neste cenário, a educação tem seu papel estratégico reforçado e é disputada como instância formadora da juventude. Dois conceitos básicos devem comandar a ofensiva pelo lado neoliberal/libertariano na educação: o neotecnicismo digital e a meritocracia.

Pelo lado conservador, a agenda avança, como se sabe, com a implementação da escola cívico-militar para disciplinar áreas mais pobres, combate ao que chamam ideologia de gênero e implementação de versões do movimento escola sem partido.

As duas agendas constituem o maior cerco já visto sobre a escola, mas vamos nos concentrar aqui na agenda neoliberal, que tem maior alcance e poder destrutivo.

Continua no próximo post.


[1] Marx, K. (1984) O Capital. Vol. III, tomo 1. Ed. Abril Cultural.

[2] Ver Michael Roberts (2022) disponível em https://thenextrecession.wordpress.com/2022/01/22/a-world-rate-of-profit-important-new-evidence/ disponível também em português em https://eleuterioprado.blog/2022/03/27/uma-taxa-de-lucro-mundial-novas-evidencias/; Carchedi, G. and Roberts, M. (2018) World in Crisis: a global analysis of Marx’s law of profitability. Chicago: Haymarket Books; Roberts, M. (2016) The Long Depression. Chicago: Haymarket Books.

[3] Harvey, D. (2019). Teoria da crise e a queda da taxa de lucro. Geografares(28), 15-35. Acesso em 5 de outubro de 2021, disponível em https://periodicos.ufes.br/geografares/article/view/24381/16649; Roberts, M. (2019). Monocausalidade e teoria da crise: uma resposta a David Harvey. Geografares, 36-54. Acesso em 5 de outubro de 2021, disponível em https://periodicos.ufes.br/geografares/article/view/24382/16650

[4] Ver Wallerstein, I. (2011) The modern Word-system IV: centrist liberalism triumphant, 1789-1914. Berkeley: University of California Press.

[5] Carchedi, G. and Roberts, M. (2018) World in Crisis: a global analysis of Marx’s law of profitability. Chicago: Haymarket Books. Prado, E. (2022) A estagnação e o futuro da economia capitalista no Brasil. Disponível em https://eleuterioprado.blog/2022/01/30/a-estagnacao-e-o-futuro-da-economia-capitalista-no-brasil/

[6] Cunha, D. A natureza da “contradição em processo”. Disponível em www.sinaldemenos.org – Ano 10(13), 2019.

[7] Wallerstein, I.; Collins, R.; Mann, M.; Derluguian, G. and Calhoun, C. (2013) Does Capitalism have a future? New York: Oxford University Press.

[8] Uma formação exigente e elevada para o magistério associada à defesa de uma escola que restringe o uso de plataformas on line, poderá proteger ou dificultar a desqualificação e consequente desprofissionalização. A Base Nacional de Formação da ANFOPE é um elemento central nesta luta contra a desqualificação do magistério que tenderá a serampliada pelo ensino híbrido.

[9] Ver Biebricher, T. (2018) The political theory of Neoliberalism. Stanford: Stanford University Press.

[10] Wallerstein, I. (2011) The modern Word-system IV: centrist liberalism triumphant, 1789-1914. Berkeley: University of California Press.

[11] Ver Rothbard, M. (2006) For a New Liberty. Alabama: Ludwig von Mises Institute.

[12] Apesar da discordância de alguns pós-modernos que insistem em “uma nova razão do mundo”, é o próprio articulador da proposta neoliberal, Ludwig von Mises (ver Mises, Liberalismo. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises do Brasil, 2010) quem reafirma o liberalismo clássico como fundamento do neoliberalismo.

[13] Ver Slobodian, Q. (2018) Globalists: the end of the empire and the birth of neoliberalism. Cambridge: Harvard Univesity Press. Já há tradução no Brasil.

[14] Ver Michael Roberts disponível em https://thenextrecession.wordpress.com/2022/01/22/a-world-rate-of-profit-important-new-evidence/

[15] Deneen, P. (2019) Why Liberalism failed. New Haven and London: Yale University Press. (Há tradução em português.)

[16] Norris, P. and Inglehart, R. (2019) Cultural Backlash: Trump, Brexit and Authoritarian Populism. New York: Cambridge Univeresity Press; Teitelbaum, B. (2020) Guerra pela eternidade: o retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Campinas: Ed. Unicamp.

[17] McManus, M. (2020) What is post-modern conservatism? Essays on our hugely tremendous times. UK: Zero Books; McManus, M. (2020) The rise of post-modern conservatism: neoliberalism, post-modern culture and reactionary politics. Vancouver: Palgrave Macmillan.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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