Mangabeira Unger tem dito que seu objetivo é debater com uma visão ambiciosa. Lido pelo oposto, algo como o desejo de desafiar a pouca ousadia dos educadores e do MEC. Quanto às suas disputas com o MEC, as justifica dizendo que ele é adepto de “processos abertos” de construção de políticas e não fechados. Daí que queira aprofundar o debate.
Fico imaginando esta estratégia sendo usada na área da saúde, por exemplo, com os médicos – qual seria a reação. Que tal “consertarmos” os hospitais assim. Algumas pessoas pensam que possuem um método infalível de promover o avanço da humanidade, mesmo que ignorem o conteúdo específico de uma área. Mais, acham que os que dominam tal conteúdo estão contaminados e já não podem ser interlocutores “isentos”. Teoricamente (com perdão da palavra) são pragmatistas e imediatistas: o que resistir é o que vale. Recentemente ele dizia:
“O que eu quero para o Brasil é a ambição. Como diz os americanos, vamos arrebentar a boca do balão (risos). Eu vou apostar em tudo isso e depois o Brasil vai me puxar para o centro de gravidade. Mas eu vou resistir.”
O mais provável é que a história lhe reserve uma posição pouco confortável no futuro, muito provavelmente, a de inocente útil – no melhor dos casos – na qual ele figurará como um neo-pragmatista que em sua ingenuidade, abriu caminhos para a implantação das teses dos reformadores empresariais no Brasil como política oficial. Mas há outras possibilidades que não descarto. Em todo caso, temo que Mangabeira esteja mais é centrado em si mesmo e que tenhamos outras coisas mais importantes a fazer do que cuidar do seu centro de gravidade.
No último post apresentamos uma visão geral do novo documento. Nossa análise aqui somente pode ser feita do ponto de vista do campo da avaliação. Certamente os colegas que tratam especificamente com a questão da gestão e do sistema nacional de educação poderão ter outra visão e outra contribuição em relação à matéria. Este autor não tem competência em tais áreas.
No entanto, do ponto de vista da avaliação, no item II da primeira parte, o documento especifica as inovações em avaliação e planejamento:
“a. Estabelecimento dos objetivos centrais do processo de avaliação, com destaque para a necessidade de identificar, avaliar e divulgar as experiências educacionais exitosas da Federação brasileira. Há previsão de designação de órgão específico para concretizar esse objetivo.
1. Previsão de Estudantes: cadastro nacional de estudantes para armazenar, tratar e integrar dados e informações dos estudantes do ensino básico, de forma a auxiliar a formulação, implementação, execução, acompanhamento e avaliação das políticas educacionais.
2. Avaliação anual e classificação do desempenho dos sistemas de ensino a partir de critérios definidos pela Comissão Tripartite de Cooperação Federativa – CTC, de forma a criar referência para as políticas públicas de educação, em especial aquelas relativas a currículo, assistência técnica e financeira, apoio e resgate dos sistemas de ensino.
3. Previsão de patamar para identificar os sistemas de ensino em situação de “desempenho crítico”, essencial para construção de políticas públicas de apoio a esses sistemas. (Todos grifos meus.)”
O documento agora não fala mais em “consertar” escolas e sim de “resgatar” escolas. A proposta procura induzir “experiências educacionais exitosas”, como se introduzir inovações fosse apenas uma questão de identificar e difundir tais experiências nas redes e cobrar. O documento propõe avaliação mais frequente do que temos hoje, passando de bienal para anual. Ou seja, mais avaliação e mais controle é a receita do sucesso que o documento propõe.
Os processos de avaliação, na visão dos reformadores empresariais, sempre censitários, devem servir para responsabilizar os atores do processo pedagógico, em especial gestores, professores e estudantes. Por isso, têm que ser censitários e não amostrais. A visão é verticalizada e baseada na desconfiança, ou seja, se não há responsabilização e incentivo não há empenho. Portanto, para entendermos toda a lógica da proposta é preciso procurar com o que a avaliação está sendo correlacionada.
É assim que encontramos no item III – da distribuição de recursos – a novidade da introdução do Custo Aluno Qualidade – CAQ ao longo dos próximos 10 anos. O CAQ é uma luta dos educadores (salve Prof. Marcelino!), que aqui no documento é sequestrado para propósitos que não estão colocados para ele pelos educadores, ou seja, ele é inserido aqui como instrumento de uma outra filosofia educativa, em uma outra lógica operativa do sistema nacional de educação, baseada na cobrança e no controle da escola. Desta forma, a análise do documento da SAE não pode basear-se apenas em ver se o CAQ está ou não está presente. É preciso indagar se está e dentro de qual filosofia educacional foi inserido. Isso vale também para a questão de levar ou não em conta o PNE. Não basta. É preciso indagar sob qual orientação educativa se está levando em conta o PNE. E aí as nossas referências são a Conferência Nacional de Educação, onde a filosofia da área educacional foi construída democraticamente e está demarcada.
É assim que neste mesmo item analisado, o documento propõe “articular assistência financeira à assistência técnica para potencializar o desenvolvimento da gestão da educação.” Pela assistência técnica, vão correr as concepções de educação e o enfoque filosófico geral educativo e pela assistência financeira associada a ela, a pressão de adoção dos elementos conceituais que, conectados aos resultados dos processos de avaliação e presentes na assistência técnica, irão viabilizar o controle da escola e de sua metodologia dentro da ótica proposta pelos reformadores empresariais. O portal de devolutivas que o INEP colocará em operação em agosto e o cadastro nacional de estudantes aqui proposto, serão matéria prima desta tarefa. É por isso que os reformadores se levantam contra a proposta da SASE do MEC para a elaboração do sistema nacional de educação – inclusive porque estão vendo a possibilidade neste momento de ir bem mais longe no quadro político liberal/conservador atual. Lembremos que é no Congresso que tudo isso vai parar.
Um termo muito usado na proposta é “pactuar” ou seja estabelecer o toma lá dá cá: libero recursos e você atende às metas, à base nacional, aos protocolos de ensino etc. tal como a proposta foi formulada no primeiro documento da SAE, pela via da combinação entre assistência financeira e assistência técnica, amarrada a pactos. Ora, aprendemos isso com os próprios americanos por ocasião, há décadas, dos acordos MEC-USAID. O que mudou? Mudou que não há mais necessidade de enviar alguém com uma pastinha e um saco de dinheiro e esconder dentro dele as receitas. Agora isso é feito aqui mesmo por interlocutores locais da OCDE.
Para se ter uma visão completa do quadro em que se insere a avaliação, devemos olhar finalmente no item IV onde são propostos os instrumentos de controle, ou seja, as três câmeras: a Comissão Tripartite de Cooperação Federativa, em nível federal; as Comissões Bipartites de Cooperação Federativa, em nível estadual; e as Comissões dos Polos Regionais de Educação, de escopo local – leia-se, neste último caso, a implementação do que já foi conseguido pelos reformadores empresariais no Conselho Nacional de Educação em 2011, com a aprovação da constituição das ADE ou Arranjos de Desenvolvimento Educacional.
Este é o conjunto das relações envolvidas nos processos de avaliação – a partir de uma base nacional comum – os quais associam-se à pactuação de distribuição de recursos financeiros que especificam concepções de educação e suas práticas escolares correspondentes, através de assistência técnica vinculada, tudo definido “democraticamente” por Comissões restritas a gestores de sistema, sem direito a recurso em outros órgãos, regado a experiências exitosas selecionadas.
Continua no próximo post.
Parabéns Luiz por essas claras análises e argumentações. Ivone