Será o Ceará o nosso Texas?

Com a ênfase em “bater metas” no Ideb, as escolas de “sucesso” serão aquelas que treinarem os alunos para se sair bem nas provas de matemática e português. Uma total inversão dos objetivos da formação humana. Esta é a “filosofia educacional” que deverá se fortalecer no país. O atual governo deverá estabelecer incentivos para isso também, agravando mais ainda a “corrida para nenhum lugar”.

Os municípios e estados que quiserem ser bem sucedidos deverão ter um controle cada vez mais rígido sobre o que se faz em sala de aula e adicionar um conjunto de provas intermediárias que farão o monitoramento da “aprendizagem” do aluno e o ensinarão a ir bem nas provas. O que importa é a média subir – por bem ou por mal. O exemplo mais claro disso é Sobral no Ceará (veja aqui). Isso irá tornar o magistério ainda mais desestimulante e o estudante em alguém doente, estressado.

No Ceará, que é o campeão do “bate metas”, há um dado no emaranhado de slides do powerpoint do INEP sobre os resultados do SAEB (Prova Brasil) e que foi divulgado nesta semana, o qual deveria ser motivo de estudo.

O Ceará colocou o desenvolvimento educacional dos municípios como parte das condições de partilha do ICMS estadual (veja aqui a cartilha do ICMS). Isso certamente está gerando competição e um controle intenso no interior das redes e escolas, via avaliação. Pelas regras de distribuição, 25% do ICMS é repassado aos municípios em função de resultados em educação, saúde e meio ambiente. No caso da educação, cabe a ela 18% deste valor, assim dividido: 12% baseado na avaliação da alfabetização dos alunos na 2a. série do EF e 6% baseados no índice de qualidade educacional dos alunos da 5a. série do EF. Conforme a própria Secretaria diz: “são penalizados os municípios que apresentam alta desigualdade no desempenho de seus alunos”. A avaliação do fundamental I, anos iniciais, portanto, define parte do ICMS recebido pelo município. Além disso, distribui-se 25 milhões de reais em meritocracia.

A que pressões estão sendo submetidas as redes públicas do Ceará? Já que o modelo deverá ser imitado, eis aí um bom tema de pesquisa. Como as redes estão respondendo a estas pressões para garantir as metas? Há efeitos colaterais? A regra de distribuição do ICMS e da meritocracia nutrem a crença de que os problemas de desigualdade escolar são intrínsecos à escola, quando sabemos que, além dos intrínsecos, mais de 60% das variáveis que afetam o desempenho do aluno na escola estão fora da escola, na vida ou nas características pessoais dos estudantes.

Com todo o respeito pelo trabalho dos professores do Ceará, há uma situação evidenciada pelos dados do INEP que merece mais pesquisa. E certamente os professores têm uma resposta para isso. Mas, o Ceará é o único lugar do mundo, salvo melhor juízo, em que estudantes de nível socioeconômico (NSE) mais alto estão aprendendo menos matemática do que os de NSE mais baixo. Sim, vou repetir: os estudantes com NSE mais alto estão aprendendo menos matemática do que os estudantes com NSE mais baixo. A desigualdade escolar foi invertida: os “mais ricos” aprendem menos que os “mais pobres”. No mundo inteiro as avaliações mostram uma relação direta, em média, entre maior desempenho e maior nível socioeconômico: menos no Ceará. Lá, a média do desempenho dos estudantes informa que os de NSE mais altos estão piores em matemática na 5a. série, do que os de NSE mais baixos (segundo a estratificação do INEP). E no caso de Língua Portuguesa há praticamente empate.

Na tabela abaixo isso pode ser visto. Note-se que há uma diferença de 7 pontos a favor do desempenho dos NSE mais baixo e em detrimento dos NSE mais altos na média de aprendizagem em matemática na quinta série. Já na prova de matemática do 9o. ano, a relação entre as notas quase zera, ficando em 3 pontos favoráveis para os de NSE mais alto. Além disso, no caso de língua portuguesa, na 5a. série, a diferença quase zerou: NSE alto e baixo aprendem igualmente (apesar de voltar a ser de cerca de 8 pontos de vantagem para os NSE mais altos no 9o. ano, quatro anos depois).

Coincidentemente, o estado que pune municípios com repasse menor de ICMS no caso de haver maior desigualdade entre desempenhos, apresenta também a menor desigualdade de desempenhos quando comparado a todos os outros estados brasileiros. Achamos a solução para o Brasil? Ou podem estar havendo efeitos colaterais não contabilizados? Ou mero problema produzido pela metodologia do INEP? Não é bom investigar antes de generalizar? Para a revista Veja, o assunto já está resolvido: basta usar meritocracia e expandir o modelo do Ceará para o Brasil. Será? A Veja esquece de mencionar que em São Paulo a meritocracia é um fracasso.

Nada contra os “mais pobres” aprenderem, mas inverter a desigualdade é inédito. Se a moda pega, logo veremos aparecer a Campanha pelo Direito dos Mais Ricos Aprenderem. Ponto fora de curva até onde se sabe. Sem dúvida, algo intrigante para as condições sociais brasileiras.

Quando olhamos para a diferença de desempenho nacional dos estudantes a partir do NSE, vemos que há uma diferença de 46 pontos a favor dos NSE mais altos (ponto positivo para o INEP por apresentar este dado). E quando olhamos para cada um dos estados brasileiros esta diferença varia de 11 a 49 pontos também a favor dos NSE mais altos. É só no Ceará que isso não ocorre. Precisa ser estudado. Os Estados Unidos e o Chile, com políticas semelhantes, ampliaram a segregação escolar. Depois de mais de 15 anos de políticas similares, o gráfico abaixo mostra a diferença entre desempenho dos mais ricos e dos mais pobres: a diferença passou de 26,3 para 30,1 pontos.

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Ceará Diferença em pontos Média do NSE mais baixo Média do NSE mais alto
5o. ano Português 0,3 212 213
5o. ano Matemática -7 227 219
9o. ano Português 8,1 249 257
9o. ano Matemática 3 252 255

No mínimo será necessário mais evidência empírica sobre o que está acontecendo. Especialmente porque o Ceará é o segundo estado em IDH na região nordeste com 0.682, mas é o décimo sétimo estado no ranking do país. Seu IDH é considerado médio, e perde neste indicador para o Rio Grande do Norte que tem 0,684. O Ceará possui ilhas de IDH mais alto como Sobral e Fortaleza.

Note que o melhor colocado no IDH da região, o Rio Grande do Norte, tem uma diferença entre a aprendizagem dos “mais ricos” com os “mais pobres” que em média é de 28 pontos a favor dos NSE mais altos. No Ceará, onde o IDH é menor, isso se inverte e há 7 pontos de vantagem para o desempenho dos NSE mais baixos (227 pontos em média) em relação aos NSE mais altos (219 pontos em média).

Também os Estados Unidos, talvez por outros motivos, teve o seu “milagre do Texas” (veja abaixo) e serviu para impor meritocracia para todo o pais através da No Child Left Behind, uma lei que para constatar seu fracasso na elevação da qualidade da educação se levou 14 anos, mas que foi eficaz para incentivar a privatização da educação.

George Bush (filho) implantou esta lei em 2001, gabando-se de sua atuação como governador do Texas. Ele aplicou antes em seu estado, quando era governador, os princípios da No Child Left Behind. Apresentou “resultados” para convencer democratas e republicanos a embarcar na lei. Mas logo o “milagre do Texas” seria descoberto e esclarecido. Mas não antes de que a lei tivesse sido aprovada. No link abaixo, você pode conhecer um pouco desta história (em inglês). Abaixo, uma das conclusões:

“As pontuações no teste do Texas subiram, mas no SAT para estudantes universitários potenciais caíram. Os pesquisadores descobriram que os testes do Texas projetados pela Pearson mediam principalmente a habilidade de fazer testes. Apologistas escolheram a dedo as pontuações do National Assessment of Educational Progress  para mostrar o progresso, mas no geral o Texas perdeu terreno para o resto do país, como mostrou o Dr. Julian V. Heilig, um pesquisador em educação da Universidade do Texas. Mas aí já era tarde demais. O Milagre do Texas, miragem ou não, era a lei da terra.”

Leia o texto completo aqui e aqui.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
Esse post foi publicado em Ideb, Mendonça no Ministério, Meritocracia, Privatização, Prova Brasil, Segregação/exclusão e marcado , . Guardar link permanente.

11 respostas para Será o Ceará o nosso Texas?

  1. Ótimas ponderações sobre os resultados do Ceará!

  2. Socorro Nunes disse:

    Uma das possíveis respostas para esta questão intrigante não estaria no fato de que provavelmente o treinamento exaustivo dos alunos no Ceará não seja feito com os alunos mais ricos de escolas privadas? Se a avaliação mede mais a capacidade de realizar testes do que o conhecimento, essa hipótese é plausível. Ou seja, os alunos do Ceará são experts em realizar testes mas não adquirem conhecimentos. Enquanto os alunos das escolas privadas não têm está expertise, por isso não alcançam o mesmo desempenho.

    • É possível, mas não está claro se os dados do INEP incluem as escolas privadas, pois elas só participam amostralmente no SAEB. Mas é uma possibilidade.

      • socorronunesmacedoufsj@gmail.com disse:

        É, se as escolas privadas não participam minha hipótese é a de que se pode investigar o que e o quanto os alunos conhecem das provas, há quanto tempo estão expostos a esse treinamento. Sei que no Ceará o treinamento é pesado, tenho um sobrinho de dez anos que vive no sertão e acha muito fácil responder à s questões pois já sabe de cor o estilo das provas.

    • Isto é verdade, há como descontar o nível sócioeconômico, mas a técnica para se fazer isso seria aplicar modelos lineares hierarquicos. Esta é uma boa linha de análise, mas é preciso tempo e acesso aos microdados do INEP. Além disso, trata os dados como sendo obtidos adequadamente. Dessa forma, não explica como a escola procedeu para elevar o nível de aprendizado. A questão que estamos colocando é como as redes do Ceará estão reagindo, na sua prática, à política do estado. Há evidências internacionais de que as escolas ensinam a responder aos testes. Relatos informais locais tambem dizem isso. Sem saber como os dados estão sendo produzidos, qualquer coisa que ocorra com eles, inclusive o uso de HLM, fica com a dúvida de como o dado foi produzido na escola.

  3. Fiz gráficos da média das escolas no ENEM 2014 para Brasil, Ceará e Sobral contra o NSE destas escolas (somente concluintes do 3o ano do ensino médio), e aparentemente o milagre não se repete neste teste “high stakes”. Assim como aconteceu nos EUA.

    https://twitter.com/ewout/status/775115284927635456

    • Ola, grato pelo envio dos gráficos. Ocorre que o ENEM é um exame voluntário enquanto que a Prova Brasil nas escolas públicas é censitária no ensino fundamental (I e II) e amostral no ensino médio (neste caso pública e privada). Portanto, é difícil comparar. Além disso, não sei se há compatibilidade entre as provas Enem e Prova Brasil. Mas agradeço muito. Luiz Carlos

  4. Karlane Holanda Araújo disse:

    Prezados, realizei pesquisa de mestrado no município de Sobral a fim de investigar os efeitos da política accountability nos processos pedagógico. Quem tiver interesse em verificar os resultados, pode acessar no repositório da UFC. A dissertação revela, em parte, o milagre do Texas.
    Tema da dissertação: Os efeitos do Prêmio Escola Nota Dez nos processos pedagógicos das escolas premiadas de Sobral…

  5. VALDESON ALVES DE MOURA disse:

    Olá.. achei muito interessante suas colocações…e queria se p senhor possui algum estudo sobre esse fenômeno que acontece no Ceará.

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