MacLean: salvar o capitalismo da própria democracia – III

(Continuação de post anterior.)

O trabalho de MacLean é um estímulo à análise de nossos erros. O que segue é um exercício inicial. Devemos notar que a nova direita tem dois traços que foram muito mal avaliados por nós ao longo dos últimos anos: primeiro, como os pós-modernos, ela também aposta no indivíduo, rejeitando os coletivos organizados na medida que estes podem levar o Estado a atuar contra sua “liberdade”, e também, a nova direita rejeita a tese de alguns gramscianos, e não está disposta a permitir consensos ou acordos – é beligerante e afirmativa em suas posições (como Doria), se necessário fazendo uso da violência física e/ou institucional (note-se o tratamento dado por Doria aos dependentes químicos em São Paulo). Como explica MacLean, para a nova direita, todo o mal começa quando os desfavorecidos se organizam para influenciar o Estado. Dai a necessidade da cruzada da direita para salvar o capitalismo da “democracia” – fundamento dos golpes.

É difícil falar destes dois movimentos contra-hegemônicos na medida em que eles são amalgamas de posições e interpretações: o gramscismo como justificativa da “negociação por dentro” (não representativa de todos os gramscianos brasileiros, mas pelo menos uma interpretação influente) e o pós-modernismo. No entanto, acredito que, com o golpe 2016, estas duas formulações correntes na educação brasileira mostraram suas dificuldades.

Nunca fui adepto das teses do pós-modernismo e embora estivesse mais próximo teoricamente de Gramsci, também nunca aderi à interpretação que certa esquerda brasileira faz das propostas deste. Mas alimentava a esperança de que defrontados com um golpe institucional, produzido à socapa por meios midiáticos, jurídicos e parlamentares, que revelou quão frágil é a crença na “negociação entre classes” ou a crença na dissonância da significação de discursos como forma de romper narrativas oficiais, isso pudesse levar a um exame crítico. Não é o que parece estar acontecendo.

Pelo que sei, embora por razões diferentes da nova direita, os pós-modernos não acreditam em coletivos, pois os consideram igualmente opressores. A tese é que a luta se faz pelo micro, pelo indivíduo, algo como uma teoria da dissonância dos discursos, que aposta no indivíduo como forma de mudar a sociedade.

Por definição, o pós-moderno não têm aderência a nenhuma filosofia social, mas defende a sua com uma certeza surpreendente para quem aposta “em tese” no relativismo (frequentemente dos outros), ou seja, na inutilidade de se ter uma posição. Pela recusa prévia de todas as posições, o pós-modernismo presta um grande serviço à ordem dominante, pois leva a uma desmobilização das filosofias sociais contra hegemônicas, substituindo-as por nenhuma outra, a não ser a própria, voltada para o indivíduo e seu micro. Desativa exatamente a mobilização coletiva contra-hegemônica.

Pela tese de que a saída está no micro, deixam de lado os determinantes sociais (especialmente a posição social dos indivíduos na sociedade) e proclamam a liberdade do indivíduo para significar a seu modo a realidade, o que seria uma forma de se opor e desconstruir a significação dominante. Por esta tese, tenho ouvido de colegas pós-modernos, que as reformas da educação em curso no MEC não são importantes por revelarem uma articulação da nova direita empresarial. O relevante seria por que elas estão sendo aceitas pelos indivíduos, o que justificaria que nos voltássemos para uma “quebra da significação dominante” via descontinuidade da narrativa pelos indivíduos, empoderados com suas próprias significações, o que levaria a uma crítica e recusa daquelas reformas. A questão seria, nesta visão, “por que os indivíduos aceitam as reformas” e não “por que elas estão sendo propostas pela nova direita empresarial”.

Penso que estes dois ângulos (por que o indivíduo aceita e por quem elas estão sendo propostas) não se separam e que não temos porque escolher apenas um deles. Estão articulados. Mais ainda, tenho até simpatia pela ideia da “desobediência civil”, mas não acredito que isso vá surpreender a nova direita e nem ser factível para os indivíduos isoladamente, inseridos em relações sociais e de trabalho cada vez mais controladas. Há vida inteligente do lado de lá como mostrou o golpe de 2016. Neste sentido, a ruptura individual, necessária, tem que estar apoiada no interior de coletivos ou o indivíduo é deixado à sua própria sorte. As pessoas não se relacionam simetricamente na sociedade, mas assimetricamente, influenciadas por suas condições de vida.

O advento do pós-modernismo no campo da educação é um dos fatores responsáveis pela despolitização da área da educação e também pela sua desmobilização como coletivo. Como o pós-moderno não pode reconhecer, por definição, um projeto histórico que aglutine e nem pode reconhecer a legitimidade do coletivo, o qual por definição para ele é opressor, estas ideias operaram uma dispersão de grande envergadura na área. Mas elas também chamaram a nossa atenção – junto com outros teóricos – para a importância da significação construída pelo próprio indivíduo. E isso é uma contribuição relevante.

Na outra ponta, temos também um grave problema no âmbito do marxismo de tipo gramsciano: fugindo de posições clássicas mais exigentes, cunhamos no Brasil uma interpretação particular sobre o trabalho de Gramsci que foi visto como um incentivo à disputa pela hegemonia por dentro do Estado (na prática, uma formulação de consensos negociados no bloco de poder entre forças do governo e da sociedade civil, bem a gosto da Carta ao Povo Brasileiro de Lula, que deu origem aos últimos 13 anos de política pública). Na proposta do PT de Lula (o PT também é um amálgama de posições) a saída estava em negociar um consenso entre trabalhadores e empresários. A interpretação de Gramsci foi usada como mecanismo de legitimação deste acordo e com isso, assumiu-se como tarefa a participação nas Comissões de Governança, nos postos do governo, Comissões e espaços onde a sociedade civil pudesse ter alguma participação e lutar pela hegemonia.

Com este pensamento, os gramscianos induziram à paralisação dos embates e do trabalho de base, apostando no “entendimento de classes”, enquanto os pós-modernos apostavam na força do indivíduo dissonante. A crítica aos “companheiros do governo” foi considerada impertinente – havia que se aproveitar das “brechas”. Não há que se ignorar que o próprio nascimento do PT – Partido dos Trabalhadores – se faz em oposição a outras siglas de maior definição à esquerda.

A ideia de avançar por dentro do Estado motivou uma “corrida às eleições”. Tentando aumentar a presença progressista no interior dos órgãos legislativos, alguns Partidos progressistas dedicaram-se “a aprender a fazer eleições com a direita” – recomendação que ouvi do presidente de um Partido. A definição teórica dos militantes foi substituída pela capacidade de “puxar votos”. Com isso, deixaram de fazer preparação política dos seus filiados e simpatizantes, enquanto a nova direita financiada pelos bilionários organizava uma rede de institutos e fundações destinadas a formar uma nova liderança que pensasse como ela – como nos mostra MacLean.

Estas posições contribuíram para que a tarefa da nova direita ficasse, neste momento, mais fácil, pois uma, pela via pós-moderna, dissolveu os projetos históricos em torno dos quais os indivíduos podem se associar para lutar coletivamente; a outra, pela via gramsciana, internalizou a luta no Estado, gerando uma total desconexão entre negociadores com trânsito no governo e a base de sustentação popular destes. A consequência, se viu recentemente com as mudanças no Fórum Nacional de Educação: com uma mera Portaria de Ministro, um instrumento fragilíssimo, se colocou fora dele um conjunto de entidades progressistas, enfraquecendo a ação das que restaram naquele fórum e tornando-as minoria.

Poderíamos agregar um grande número de situações como esta nos vários campos onde esta estratégia revela, hoje, toda a sua fragilidade. Isso ocorre por uma apropriação equivocada de Gramsci, que se esqueceu (ou não quis assumir por conforto teórico em tempos de crítica acirrada ao marxismo) que Gramsci era um leninista e que, portanto, as suas teses têm que ser interpretadas supondo-se também a concepção de Estado de Lenin, ou seja, o Estado, em essência, é uma instância que atende fundamentalmente aos interesses das classes hegemônicas. A disputa por dentro, não pode estar desarticulada da disputa por fora, via movimentos organizados enraizados socialmente.

De fato, o que se vê é que tanto a prática dos gramscianos como dos pós-modernos deixou de lado algo que se tornou uma palavra feia: a luta de classes. E é esta luta que deixa agora parte da intelectualidade educacional surpresa e desarmada para reagir, pois ela está sendo praticada pela direita a qual, supostamente, seria contra a luta de classes. Para os pós-modernos, isso é natural, pois são contra categorias e projetos. O que conta é o indivíduo na sua capacidade de significar o momento, o acontecimento. Para os gramscianos, a surpresa vem da certeza de que a “negociação” era a melhor forma de avançar socialmente e que a direita não ousaria tanto, e agora têm que lidar com um rompimento unilateral das “negociações” liderado pela nova direita ancorada no alto empresariado.

Se não submetermos à crítica estas duas vertentes, ainda que preservando o que têm de positivo, continuaremos achando que devemos organizar a resistência por cima, como justificaram alguns gramscianos, restabelecendo mecanismos de “diálogos” com o Estado. Por este caminho, feitas as reformas que o empresariado determinou, o Estado poderá até voltar a conversar. E antes que se forme fila em Brasília, é preciso alertar para o risco de nos contentarmos com isso e repetirmos o erro. Ou então, por outro lado, continuaremos acreditando que o “individuo” deixado à sua significação, como querem os pós-modernos, reagirá pela dissonância do discurso rompendo a narrativa dominante e criando um novo mundo. O golpe mostrou quem tem poder para criar e impor narrativas no âmbito social.

(Continua no próximo Post.)

 

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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Uma resposta para MacLean: salvar o capitalismo da própria democracia – III

  1. Helena Hinke Dobrochinski Candido disse:

    Excelente análise!

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