O “mi mi mi” da direita

Estava já me conformando com o “mi mi mi” da esquerda em seu lamento pela falta de reação popular ao projeto da direita em curso no país, quando li Eliane Cantanhêde a qual nos diz que estamos, agora, “todos brincando com fogo”.

Com fogo brincou a direita quando incentivou, sem motivos, a queda de uma presidenta legítima da qual não se conseguiu nem tirar seus direitos políticos, muito menos caracterizar crime de responsabilidade. Mas segundo a articulista, apenas agora, estamos “todos brincando com fogo: governo, caminhoneiros, os que amam Lula, os que odeiam Temer, os saudosos da ditadura militar…”

Até agora, a direita (e adjacências) tinha conseguido recompensar Temer pelas reformas econômicas feitas, segurando as denúncias de corrupção contra ele no Congresso. No entanto, a greve dos caminhoneiros “autônomos” e o locaute das transportadoras trouxe a questão para as ruas e tirou do Congresso o controle da blindagem de Temer – e nas vésperas das eleições, momento mais frágil para os representantes do povo, com 87% da população aprovando a greve dos caminhoneiros. Não é pouco, face à aparente calmaria que se via.

Em 2016, antes do golpe, não faltou quem alertasse: sabe-se como um golpe começa, mas não como ele acaba. Àquela época, a direita (MDB e adjacências) somou-se à “nova direita” (DEM, MBL e outros) e a pretensos sociais-democratas (PSDB) para fazer o serviço sujo. Validou toda sorte de interpretação jurídica e criou quantas armadilhas parlamentares quis para justificar seu ato. O judiciário de guerra foi liberado para prender, torturar pela prisão preventiva, obter delações seletivas e a mídia fez o trabalho de convencer a população de que político e corrupto eram a mesma coisa. A “brincadeira” saiu de controle e acabou atingindo quase todos os partidos políticos. Dois anos depois do golpe, os mesmos atores querem nos convencer que agora, sim, é que “estamos todos brincando com fogo”.

O editorial do Estadão de 30-05-2018, escancara a luta interna no campo da direita com o sugestivo título “Perigos da democracia”. Na ladainha do dia, diz o Estadão:

“O problema é que, depois que a cruzada anticorrupção no País se converteu em cruzada contra todos os políticos e, no limite, contra a política, movimentos como o dos caminhoneiros, incitados por inimigos declarados da democracia, parecem ganhar “legitimidade” aos olhos da população.”

É como se não tivessem nada a ver com a criação deste clima anti-política e anti-democracia reinante que dizem, agora, ganhar legitimidade ante a população. Se a esquerda estivesse à frente do movimento dos caminhoneiros, ela seria o alvo. Mas não está. Dessa forma, foram forçados a se dividir em uma crítica interna no próprio campo da direita.

Em tempos de ultraliberalismo, a direita gerou a “nova direita” (seu posto avançado contra a esquerda) a qual criou racionais para legitimar até mesmo uma supressão da democracia liberal. Na realidade, pensa a nova direita, que ela é defensora de “princípios e leis eternas” outorgados a ela por Deus. E como cruzados medievais sentem-se autorizados a sair em sua defesa, por todos os meios, inclusive pela violência física e/ou institucional. Basta vê-los vociferando pelo facebook.

Em seu editorial, o Estadão é obrigado a abrir fogo contra a fala da nova direita barulhenta que até admite a volta dos militares ao poder, desde “que seja pelo voto”. Na visão do Estadão, no entanto, mesmo que os militares pudessem voltar ao poder pela via democrática, “nada garantiria que, nas circunstâncias, sua permanência no poder teria o mesmo viés” [democrático].

Tal divisão se deve, é claro, a que neste momento não há um governo sequer de centro-esquerda no poder que motive sua união e, além disso, a direita tem que agradecer a disposição de Temer em fazer as suas reformas – as mesmas que ela não conseguiu aprovar nas últimas eleições, quando seu candidato – Aécio Neves – perdeu. Temer é um traidor do programa que o elegeu como vice de Dilma. Como tal, seu destino é a lata de lixo da história – a própria Eliane Cantanhêde já se refere a ele como um “cachorro morto”. E assim deverá ser visto no futuro.

A principal fraqueza das “direitas” está na sua própria filosofia social. Ela é linear, a-histórica, e não tem como resolver as contradições geradas por seu próprio modelo social – só as empurra para frente. Procura tranquilizar-se tendo uma visão eternizante das atuais relações sociais.

A velha direita brasileira incentivou a “nova direita”, seu posto avançado, a apoiar e insuflar o golpe de 2016 e agora se vê na tarefa de ter que segurá-la para que não chame um golpe contra si mesma ou seja contra o próprio governo Temer. Nestas circunstâncias, a velha direita diverge dos métodos da nova direita e sai em defesa da democracia liberal, como faz o Estadão.

O fato é que as reformas econômicas realizadas pelo governo Temer estão acirrando as contradições e estas são a fonte das lutas sociais. A permanente necessidade de aprofundar a exploração para manter seus próprios benefícios tem como resposta o aumento do conflito de interesses entre os agentes sociais, por exemplo, rentistas da Petrobras que lucram diariamente com os aumentos da gasolina baseados na variação do dólar, enquanto donos de transportadoras e caminhoneiros “autônomos” são prejudicados por terem que pagá-los em reais, sucessivamente (mais de 200).

Como o governo precisa acabar com a greve/locaute e ninguém quer perder, propõe-se que o Estado, para atender às reivindicações dos caminhoneiros, pague o prejuízo que isso gerará aos rentistas da Petrobras, através de mais impostos ou retirada de isenções fiscais. Mas isso se choca com a tese de um estado mínimo que não deve cobrar mais impostos… tese que é cara à “nova direita” (ver também aqui).

Na outra ponta, a população paga mais caro o gás de cozinha e a gasolina, em um país que passou a exportar óleo cru e importar gasolina a preço de dólar, desativando o refino de gasolina no país que era de 87% em 2015 para 68% em 2018. Toda esta política tem a cumplicidade do PSDB que administra a Petrobrás.

É neste caldeirão que nos encontramos. As contradições crescem, mudam sua natureza, transformam-se em antagonismos sociais, tal como estamos assistindo. E com elas emergem mais lutas sociais – ainda que nada disso seja automático.

Hoje, quando observamos o achaque da direita triunfalista, não temos que desanimar. As contradições vão agindo. Compete a nós lutarmos para que elas sejam compreendidas como expressão do modelo social e das reformas econômicas em curso. A esquerda precisa colocar suas filosofias sociais na mesa. Principalmente, porque se deixadas à sua própria sorte, as contradições podem conduzir à bolsonarização do país. Mas, se devidamente compreendidas e assumidas, levam a lutas sociais transformadoras que não marcam hora para eclodir – aparecem mesmo quando tudo parece uma grande calmaria na qual reina triunfante a direita.

A direita brasileira (e mundial) está cada vez mais radical (desesperada) e não tem como evitar que a cada grau a mais de agressão contra os trabalhadores, corresponda um ou mais graus de pressão contra ela no imenso caldeirão social que alimenta. Se tivessem esta compreensão, não teriam prendido Lula.

Mas, a contradição não cabe no seu modelo social, feito de ordem, progresso, precarização, cooptação e obediência. A direita mundial está irada e pré-ciente da destinação social de seu modelo e dela mesma. De certa forma, ao radicalizar a exploração com as reformas econômicas, ela está contraditoriamente trabalhando para si e criando condições contra si mesma. Lida o tempo todo com os tais “fatores contrariantes” das crises, sem resolvê-las. A grande mensagem dos caminhoneiros é que sem os trabalhadores (pejotizados, autônomos ou não), nada funciona, não importa quanto dinheiro se carregue no bolso.

Ainda que tenha suas especificidades, não será diferente também no campo da educação com a reforma trabalhista e a reforma empresarial da educação em curso. As contradições vão aumentar. Por isso, é necessário acreditar nos trabalhadores da educação, analisar a realidade, mobilizar e continuar a construir novas concepções de educação e sociedade – sem se impressionar com as aparentes calmarias e/ou gritarias das “direitas”… O futuro não pertence a elas – eis porque gritam.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
Esse post foi publicado em Assuntos gerais, Mendonça no Ministério, Meritocracia, Privatização, Responsabilização/accountability e marcado , , , . Guardar link permanente.

3 respostas para O “mi mi mi” da direita

  1. Gaudêncio Frigotto disse:

    Caro Luiz Carlos. Excelente análise. Os golpistas, seus intelectuais ou pseudo intelectuais, os âncoras da mídia empresaria e seus patrões só tem um neurônio, salvar o deus mercado. Surpreendem-se quando não vêem suas teses “teológicas” funcionado funcionando como pensam e querem. Nunca ouviram falara em contradição por isso não vêem que estão cavando a própria sepultura. .

  2. Georgina Kalife disse:

    excelente análise professor. e ainda tem muitos que não conseguem ver…

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