Pressupostos da política educacional bolsonariana- II

Continuação de post anterior.

A política educacional de Bolsonaro será uma extensão da sua política econômica. Visará transformar a educação em um setor empreendedor da economia de livre mercado.

Algumas ideias, por exemplo, os vouchers, são a reedição do que foi aplicado no Chile, sob o liberalismo econômico. Trump também se elegeu com a promessa de fazer o mesmo – universalizar os vouchers nos Estados Unidos. O Chile foi o laboratório da agenda do liberalismo econômico e uma das ideias catastróficas, por exemplo, para mudar a previdência, está na pauta de Paulo Guedes para o Brasil. Deve ser a primeira a ser implementada. Outra, dos vouchers, está no programa do Partido Social-Liberal ao qual pertence Bolsonaro, como indicamos antes. Estes são dois exemplos emblemáticos, unidos pela lógica do livre mercado.

Um livro recente de Nancy MacLean (2017) (Democracy in Chains: the deep of the radical right’s stealth plan for America) narra como se desenvolveu a agenda da “nova direita” nos Estados Unidos, que se difundiu também pelo mundo, produzindo a situação descrita antes por Giroux.

O título do livro é bastante sugestivo – “Democracia aprisionada” – e recupera o trabalho de James McGill Buchanan[1] e seu papel na estruturação de um projeto político que impulsionasse um conjunto de ideias do liberalismo econômico nos Estados Unidos, cujas origens se entrelaçam com economistas neoclássicos e a escola de economia austríaca de L. von Mises e F. A. Hayek. Para (Monbiot, 2017) “o livro é o capítulo que faltava para se entender a política dos últimos cinquenta anos”.

O trabalho descreve o braço político do neoliberalismo, construído com base na atuação discreta de James Buchanan em seu “Center for Study of Public Choise”, financiado pelos irmãos Charles Koch e David Koch, do setor petroquímico americano.[2] Tinha como objetivo treinar uma nova geração de pensadores para lutar pelo livre mercado e pela retomada do liberalismo clássico, em contraposição às ameaças da planificação da economia postas pela socialdemocracia e pelo socialismo. O objetivo era organizar uma agenda e impulsionar discretamente um movimento político que formasse novas lideranças em postos chaves de comando.

Como mostra MacLean, na história do desenvolvimento da “nova direita” neoliberal, educação e economia estiveram próximas. Foi procurando barrar a atuação do Estado, que através da Corte Suprema americana havia decretado o fim da segregação racial nas escolas americanas, que Buchanan implementou a ideia da “escolha da escola” pelos pais (vouchers), ajudando a separar a juventude branca da juventude negra nas escolas do sul dos Estados Unidos, nos idos dos anos 50 (veja também Ravitch, 2011, p. 134/5). A ideia havia sido proposta por Milton Friedman (1955), um economista da direita neoliberal americana, e seria usada pelo entorno político de Buchanan, para que os segregacionistas pudessem combater a dessegregação “imposta” pela corte suprema americana.[3]

Friedman e Buchanan, embora do mesmo grupo de economistas como Mises e Hayek[4], tinham diferenças metodológicas: Friedman, mais técnico, advogava que a economia era uma ciência positiva e que não deveria fazer julgamentos morais. Buchanan tanto quando Friedman era devotado à tarefa de restringir o controle do estado sobre a sociedade, mas assumia também a tarefa de organização do enfrentamento político.[5]

A ideia dos “vouchers” usada para manter processos de segregação racial nos anos 50, foi vendida pelo neoliberalismo como “direito democrático dos pais a escolher a escola de seus filhos”, mais tarde remasterizado também como o “direito dos pobres de escolher estudar nas mesmas escolas particulares que os ricos frequentam”. Como veremos, a experiência mostrou que esta proposta continuou seu caminho original de amplificar a segregação das escolas (não só por raça, mas por gênero e nível socioeconômico), criando “trilhas” que escolhem os estudantes segundo o dinheiro que carregam no bolso: uma elite (branca e mais rica) estuda em escola privada e quando necessário tem os vouchers para pagá-la com dinheiro público; uma classe média branca estuda em escolas privadas de menor custo ou públicas terceirizadas e pode também pagá-las com voucher, ao valor do qual adicionam algum pagamento extra; e os muito pobres (e negros) continuam estudando nas escolas públicas que sobreviveram à privatização, ou nas terceirizadas de baixa qualidade.

A principal proposta da nova direita para elevar a qualidade da escola (inserção da escola no livre mercado pelos vouchers) adotada pela reforma empresarial da educação, vem imersa, portanto, nas sangrentas lutas raciais americanas dos anos 50 (mas que duram até hoje) usada como proteção para uma elite branca, mostrando sua vocação darwinista, que combina com a ideia de sobrevivência do mais forte em um “livre mercado” concorrencial.

MacLean (2017) descreve como a lógica da agenda de Buchanan estava baseada na proclamação de que “liberdade” pessoal e social é igual a “capitalismo sem restrições”, sem interferência de governos que acabam comprometendo-se, por interesses nos votos, com “maiorias fracassadas” – leia-se, menos favorecidas socioeconomicamente. Décadas antes, tais ideias tinham sido colocadas em cena como reação à revolução russa de 1917 por Ludwig von Mises em 1922 (Mises, 2009), em 1927 (Mises, 2010), e por Frederick A. Hayek em 1944 (Hayek, 2010).

Para Mises (2010) e para Hayek (2010) a socialdemocracia, o socialismo e o nazismo eram produto das deturpações das teses do liberalismo clássico a ser combatidas – incluindo a nascente tese do estado do bem-estar social que duraria até o início dos anos 70. Para eles, toda vez que a democracia liberal falha em garantir a liberdade econômica, permitindo que seja cerceado o “direito natural” de acumular privadamente, ela compromete a liberdade social e pessoal. E somente pode haver liberdade no seu sentido pleno, se houver liberdade econômica, livre mercado e garantia do direito de cada um, por seus méritos, acumular propriedade privada. Esta concepção de sociedade tem consequências, pois está baseada na sobrevivência do mais forte, por um lado, e na ideia de que há algo mais importante do que a própria democracia, ou seja, o livre mercado gerador da “liberdade” social e pessoal. Está concepção orienta o entendimento do que seja a educação e sua política educacional.

Descrevendo como Buchanan constrói sua agenda política em meio a estes autores[6], MacLean (2017) revela que uma das suas ideias centrais é que a redistribuição de renda através de impostos que obrigam alguns a financiar o bem comum ou a promover a justiça social para outros, não passa de uma tentativa de tomar pela força algo que tais “tomadores” não tem moral para exigir, ou seja, tomar o fruto do esforço pessoal daqueles que foram bem-sucedidos. Para ele, proteger o bem-estar é proteger o indivíduo destas formas de “gangsterismo” estatal legalmente autorizado, que retiram o fruto do seu trabalho a título de promover a justiça social (p. xxiii). Buchanan escreveu em 2005: uma pessoa que fracassa em guardar dinheiro para suas necessidades futuras “deve ser tratada como um membro inferior da espécie, similar (…) aos animais que são dependentes” (Idem, p. 212).

Para Buchanan todo o mal começa quando os indivíduos, que isoladamente não têm poder, se juntam para formar movimentos para se fortalecerem numericamente e influenciar o governo, fazendo com que este ouça seus desejos e atue por eles. Tais movimentos incluem a organização dos trabalhadores e os movimentos de defesa dos direitos humanos. Ele pensa que toda vantagem que um grupo majoritário pode, devido ao seu número, impor a uma minoria não constitui persuasão, mas sim coerção sobre a minoria, uma violação da liberdade individual daqueles que honestamente pagam impostos. Contra isso, é preciso barrar a “corrupção governamental” que é feita por grupos organizados que pressionam e tornam os membros do governo receptivos a tais demandas (Idem, p. xxiv).

Em 1947, Hayek organizou uma sociedade internacional em Mont Pèlerin, nos Alpes Suíços, que depois chamou-se Sociedade Mont Pèlerin. Inicialmente reunia 40 intelectuais alinhados ao pensamento liberal (incluindo Friedman e Buchanan), de 10 países diferentes.[7]

Hayek naturalizou-se na Inglaterra e tanto ele como Mises (que se naturalizou na América) estiveram longo tempo nos Estados Unidos[8]. Suas teses influenciaram tanto M. Thatcher na Inglaterra, como R. Reagan nos Estados Unidos, responsáveis pela onda neoliberal dos anos 80.

Continua no próximo post.


[1] Toda a documentação referente a este movimento conduzido por Buchanan nos Estados Unidos, falecido em 2013, está na George Mason University em Virgínia, onde MacLean conduziu sua pesquisa.

[2] Segundo Castells (2018), os irmãos Koch também financiam o MBL – Movimento Brasil Livre – no Brasil.

[3] Friedman reconheceu esta apropriação de suas ideias com finalidade de segregar a escola, mas seu compromisso maior era combater o “controle” do governo (Ravitch, 2011, p. 134/5).

[4] Embora comungando dos mesmos propósitos políticos da nova direita, Friedman também tinha diferenças com Hayek no que diz respeito às propostas econômicas – ver Gamble (1988, pp. 43-44). A nova direita não é um bloco homogêneo de proposições econômicas.

[5] Charles Koch refere-se a Friedman como alguém que quer “fazer o governo funcionar mais eficientemente quando o verdadeiro libertário deveria destruí-lo pela raiz. ” E continua: “Na verdade, eles tentam ajudar o governo a entregar melhores resultados, o que só pode prolongar a doença” (MacLean, 2017, p. 135).

[6] As ideias de Buchanan em alguns aspectos eram até mais radicais que as do próprio Hayek. Enquanto “Milton Friedman e F. A. Hayek concordavam que os funcionários públicos tentavam sinceramente fazer o correto pelos cidadãos, mesmo que eles contestassem os métodos, Buchanan acreditava que o governo havia fracassado por causa da má-fé: porque ativistas, eleitores e autoridades usavam a conversa do interesse público para mascarar a defesa de seus próprios interesses pessoais às custas dos outros” (MacLean, 2017, p. xxxi). Apesar destas diferenças, todos apoiaram a ditadura militar de Pinochet, no Chile, em 1973.

[7] Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedade_Mont_Pèlerin . Acessado em 3 de agosto de 2018.

[8] Buchanan fez seu doutorado na Universidade de Chicago, onde estava Milton Friedman. Esta Universidade foi instalada na virada do século passado com aporte de recursos do magnata J. D. Rockefeller. Na mesma época Hayek (na Universidade de Chicago) e Mises (na Universidade de Nova York) tiveram seus salários pagos por 10 anos para divulgar suas ideias, pelo William Volker Fund, uma fundação empresarial, nos Estados Unidos. O mesmo fundo financiou também a ida do grupo para a reunião da Sociedade de Mont Pèlerin, convocada por Hayek na Suíça em 1947 (MacLean, 2017, p. 39).

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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3 respostas para Pressupostos da política educacional bolsonariana- II

  1. Pingback: Textos analíticos sobre a eleição de Jair Bolsonaro e as reconfigurações da política com o ascenso da extrema-direita no Brasil – Blog do Paulo Carrano

  2. Ivan Oliveira disse:

    Muito esclarecedor. Como é bom estudar e compreender o que se passa e se passou com tão boas e fundamentadas informações. Obrigado professor por este post e pelo excelente trabalho de divulgação da história e da ciência educacional.

  3. Pingback: Educação em debate, edição 220 – Jornal Pensar a Educação em Pauta

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