A privatização das escolas paulistanas: subsídios para o enfrentamento – III

Continuação de post anterior.

Fake news 1: Organizações da sociedade civil sem fins lucrativos visam a qualidade e não o lucro. E ainda, como são sem fins lucrativos e a escola não é vendida para a iniciativa privada, então, não se trata de privatização.

Falso, pois existem várias formas de privatização. A que mais se adequa ao PL 573 é a forma de “concessão”, que não implica na venda do bem público a terceiros, mas continua sendo privatização. No caso, o que temos é a concessão da escola para a iniciativa privada operar sob uma “suposta” fiscalização do poder público.

Quanto à afirmação de que as “sem fins lucrativos”visam apenas a qualidade e não o lucro, esta propaganda já foi desmascarada nos países centrais, especialmente nos Estados Unidos por pesquisadores da Network for Public Education[1]. Em estudo recente, eles procuraram checar se estas organizações eram de fato “sem fins lucrativos”. Em suas conclusões o estudo mostra como funciona o esquema:

“Uma entidade de gestão com fins lucrativos, comumente referida como uma EMO – Educational Management Organization – encontra indivíduos interessados em operar uma escola terceirizada e os ajuda a criar uma organização sem fins lucrativos, bem como a solicitar uma licença de atuação como terceirizada na educação. Posteriormente, o conselho da entidade sem fins lucrativos firma um contrato com a entidade que tem fins lucrativos para administrar a escola” (Network for Public Education, 2021, p. 4)[2].

O relatório mostra como se dão estas relações. As organizações (com e sem fins lucrativos) são entidades independentes uma da outra, mas, posteriormente, realizam negócios entre si na forma de subcontratação para prestação de serviços ou fornecimento de materiais ou até mesmo para administração. E é por isso que Peter Greene[3] chama as escolas terceirizadas sem fins lucrativos de “máquinas de lavagem de dinheiro”. O relatório do NPCE continua:

“Neste relatório, focamos o mundo das escolas terceirizadas [charters ditas sem fins lucrativos] mas organizadas, de fato, para ter fins lucrativos, um mundo oculto e incompreendido. Nós retiramos o véu sobre táticas e práticas destinadas a captar dólares públicos, tanto quanto possível, por meio das escolas terceirizadas [sem fins lucrativos], enquanto se escondem atrás de leis destinadas a manter a lucratividade oculta aos olhos do público. Este relatório expõe como grandes e pequenas empresas com fins lucrativos evitam as leis estaduais que impedem e tornam ilegais as escolas charters com fins lucrativos, valendo-se de associação com entidades lucrativas e constituindo uma fachada de entidade sem fins lucrativos. [No relatório] explicamos e fornecemos exemplos de como proprietários de entidades com fins lucrativos maximizam seus lucros por meio de autonegociação, taxas excessivas, transações imobiliárias e alunos mal atendidos que [depois] precisam de serviços mais caros” [4].

Diz ainda o relatório:

“Apesar dos regulamentos rígidos contra o desembolso de fundos do Programa Federal de Escolas Terceirizadas para escolas operadas por entidades com fins lucrativos, identificamos mais de 440 escolas terceirizadas que operam com fins lucrativos e que receberam subsídios totalizando aproximadamente US $ 158 milhões entre 2006 e 2017, incluindo bolsas para escolas terceirizadas com contratos de repasse para fins lucrativos”[5].

Mas há ainda outros recursos para camuflar as relações. Aqui mesmo no Estado de SP, recente CPI na área da terceirização da saúde para organizações revelou altos salários dos diretores e subcontratação de empresas para fornecimento de serviços e produtos ligados à administração dos hospitais. Dessa forma, mesmo que a entidade que administra seja sem fins lucrativos, ela favorece empresas privadas lucrativas que se associam a ela, seja por laços comerciais ou de parentesco.

Destaque-se ainda outro ponto. Enquanto as escolas públicas podem manter ensino com professores qualificados, dosando adequadamente o tempo da criança frente às telas de plataformas on line de aprendizagem como complemento de sua ação presencial, a iniciativa privada está inserida em um processo de competição interempresarial visando lucro, portanto, ela tenderá a introduzir tecnologia virtual nas salas de aulas (ou seja as tais inovações a que  se refere o PL573) e com isso, diminuir pessoal ou colocar professores de menor qualidade, mantendo os estudantes por maior tempo em frente a telas, com consequências psicológicas e físicas para os estudantes. Como diz um relatório do NEPC:

“As tecnologias digitais utilizadas nas escolas estão cada vez mais sendo aproveitadas para ampliar o marketing corporativo e a realização de lucros e ampliar o alcance das atividades de comercialização em todos os aspectos da vida escolar dos alunos. Além do objetivo de longa data de proporcionar exposição à marca, o marketing por meio da tecnologia educacional agora envolve rotineiramente os alunos em atividades que facilitam a coleta de dados pessoais valiosos e que levam os alunos a aceitar monitoramento e vigilância implacáveis” (Boninger, F., Molnar, A., & Murray, K., 2017). [6].

Em entrevista a Irene Velazco na BBC, M. Desmurget, um neurologista, comenta seu livro (“A Fábrica de Cretinos Digitais: os perigos das telas para nossos filhos”) que apresenta dados sobre como os dispositivos digitais estão prejudicando o desenvolvimento neurológico das crianças e jovens.

“Simplesmente não há desculpa para o que estamos fazendo com nossos filhos e como estamos colocando em risco seu futuro e desenvolvimento”, alerta o especialista em entrevista à BBC News Mundo. As evidências são palpáveis: já há um tempo que o testes de QI têm apontado que as novas gerações são menos inteligentes que anteriores” (Velasco, 2020)[7].

Também em entrevista a Ima Sanchís, publicada por La Vanguardia ele afirma:

“Quanto mais os países investem em tecnologias da informação e comunicação (TICs) aplicadas à educação, mais baixo o rendimento dos estudantes. Quanto mais tempo os alunos passam com estas tecnologias, mais pioram suas qualificações” (Sanchís, 2020)[8].

Continua no próximo post.


[1] Rede pela Educação Pública, organização americana destinada a defender a escola pública. É presidida por Diane Ravitch: https://networkforpubliceducation.org/

[2] Network for Public Education. (2021). Chartered for Profit: The Hidden World of Charter Schools Operated for Financial Gain. Acesso em 5 de julho de 2022, disponível em https://networkforpubliceducation.org/chartered-for-profit/

[3] Greene, P. (2016). For HRC: Profit Vs. Non-Profit Charters. Cormudgucation’ blog. Acesso em 4 de julho de 2022, disponível em https://curmudgucation.blogspot.com/2016/07/for-hrc-profit-vs-non-profit-charters.html

[4] Idem Network for Public Education (2021) p. 4.

[5] Idem Network for Public Education (2021) p. 4.

[6] Boninger, F., Molnar, A., & Murray, K. (2017). Asleep at the Switch: Schoolhouse Commercialism, Student Privacy, and the Failure of Policymaking. Acesso em 3 de julho de 2022, disponível em https://nepc.colorado.edu/publication/schoolhouse-commercialism-2017

[7] Velasco, I. (2020). ‘Geração digital’: por que, pela 1ª vez, filhos têm QI inferior ao dos pais. Acesso em 5 de julho de 2022, disponível em BBC News Mundo: https://www.bbc.com/portuguese/geral-54736513

[8] Sanchís, I. (2020). “A atual loucura digital é um veneno para as crianças”. Entrevista com Michel Desmurget. La Vanguardia. Acesso em 3 de Julho de 2022, disponível em https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/603049-a-atual-loucura-digital-e-um-veneno-para-as-criancas-entrevista-com-michel-desmurget

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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