A velha razão do mundo (em apuros) – I

A meritocracia, ou seja, a hierarquia social justificada pelo mérito do indivíduo que obteve a “justa” recompensa (em vida) através de um suposto esforço pessoal, torna-se cada vez mais uma explicação corrente para o fracasso ou sucesso da juventude em um mundo capitalista marcado pelo colapso motivado por suas próprias contradições internas. A escola está sendo chamada, pela reforma empresarial da educação, a oficializar cada vez mais esta crença como projeto formativo da juventude.

A sociologia macro-histórica há tempos explicitou a inviabilidade do capitalismo como um sistema social estável, nestes seus 500 anos de existência (Wallerstein, 2001). O aparecimento do neoliberalismo não é outra coisa senão um sintoma de agravamento permanente de seu metabolismo doentio baseado no insano objetivo de acumular capital para acumular mais capital – a despeito das condições sociais e ambientais da empreitada.

Nesta sua fase crítica, parte significativa dos indivíduos são lançados ao mar por conta de uma suposta incompetência pessoal, com a finalidade de dissimular as dificuldades do próprio sistema em cumprir promessas históricas de lhes oferecer “progresso”. Soa quase como um último esforço no sentido de salvar o próprio sistema ou ainda, como uma espécie de botão “dane-se” diante do desastre anunciado. Em meio a isto, surge um “anti-globalismo” saudoso do auge do imperialismo americano.

Alguns indagam por que o governo Bolsonaro retirou de cena o tema da desigualdade social. A resposta pode ser que, para o neoliberalismo, não há desigualdade social, mas apenas diferenças de mérito.

Esta crença não é nova, não representa uma “nova razão do mundo” como sugerem Dardot e Laval (2016), mas antes, é a mesma “velha razão do mundo” liberal, agora radicalizada e elevada à condição de projeto formativo para a juventude pelo neoliberalismo, como expressão da gravidade do momento vivido, no mundo, pelo capitalismo histórico a partir dos anos 70. Não se trata aqui, convém reforçar, de se supor uma solução inexorável a partir da existência de tais contradições. Mas elas não podem ser ignoradas no desenvolvimento histórico.

Durante décadas, o liberalismo centrista (Wallerstein, 2001) e a socialdemocracia ajudaram a postergar conflitos com a promessa de que o Estado do bem-estar social constituía um meio termo entre os interesses do mercado e os interesses de progresso social daqueles deixados para trás. A tentativa levou a uma incompatibilidade entre o capitalismo e a própria democracia liberal.

Esta promessa não cumprida gerou a descrença no papel do Estado conciliador e na própria Política e será difícil recuperar a confiança desta tese em meio à crise estrutural do capitalismo que passa pelo aumento da precarização do trabalho, pela crise fiscal do Estado, e pelos problemas ambientais e culturais – além do próximo impacto da nova onda de automação, caracterizada pela introdução da inteligência artificial no processo produtivo, que atingirá também a classe média (Collins, 2013).

De fato, após 1989 e com o refluxo dos movimentos anti-capitalistas, o capitalismo está em luta com suas próprias contradições vindas de dentro dele mesmo (Wallerstein, 2001). Vale dizer: ele nem precisaria de inimigos externos se quiséssemos aceitar a improvável existência de uma força interna indutora de “progresso”, inaugurada pela modernidade do capital nos séculos XV e XVI, que inexoravelmente nos levaria ao socialismo ou a algum sistema superior ao capitalismo. De fato, há quem diga que o capitalismo é vítima de seu próprio sucesso (Streeck, 2016) ao ter conseguido atingir seu objetivo insano de acumular capital para acumular mais capital ainda, em um movimento sem fim, cujo alerta soou na crise de financeirização de 2008.

Independentemente dos destinos do capitalismo, um tema que permanece aberto, o fato concreto com o qual a moderna sociologia macro-histórica ou dos “sistemas-mundo” concorda é que o capitalismo como sistema histórico está em crise (Wallerstein, Collins, Mann, Derluguian, & Calhoun, 2013) podendo até levar, dentro de algum tempo não tão distante, à sua substituição por outro sistema (melhor ou pior). Enquanto isso não ocorre, o capitalismo vai radicalizar suas teses até o limite do possível, na forma já anunciada pelo neoliberalismo onde a meritocracia é reforçada como o grande manto mágico da ocultação tanto das relações sociais como dos próprios limites do capitalismo.

Em todas as épocas históricas, a educação não foi outra coisa senão a expressão dos interesses daqueles que dominaram sua época, sob protesto e intensa disputa feita pelas vítimas de tal dominação. A escola sempre foi um local de disputa.

No interior da atual crise do capitalismo, sob a radicalização neoliberal, a escola não poderia ser outra coisa senão um local de disputas. Mas o que há, afinal, de novo nisso?

Sob a lógica neoliberal, a escola (ou qualquer instituição social) deve comportar-se como uma organização empresarial em um ambiente concorrencial, que Marilena Chauí descreve como sendo uma lógica concorrencial mascarada de “meritocracia” (Chauí, 2018).

Neste processo, a escola é convertida (como as demais instituições sociais e o próprio Estado) em uma “organização de tipo empresarial” onde a sua “qualidade” é produzida (a exemplo dos mercados) pela concorrência entre escolas, professores e estudantes.

A escola, portanto, é disputada como um local de vivência da concorrência, mascarada de meritocracia. O objetivo desta é naturalizar os perdedores como vitimas de si mesmos. Para tal, a qualidade deve ser pretensamente expressa em “resultados quantitativos” obtidos em um processo concorrencial chamado “avaliação de larga escala”, produzindo ranqueamento de uma suposta “qualidade”, com o objetivo de orientar a escolha da escola pelos “clientes”, retirar da avaliação os fatores sociais que limitam a qualidade produzidos pelas próprias instabilidades do sistema e, por este processo, declarar as escolas “comparáveis” a despeito de suas realidades.

A sua qualidade, agora, é expressa pela “nota” ou pelo “índice de avaliação” pelo qual todas as escolas e estudantes são colocados na mesma “métrica” abstraída de sua realidade ou quando muito acrescida de outra “métrica”, o seu nível sócio-econômico médio. Submetidas à padronização das BNCCs, controladas por processos de “accountability” oriundos de ambientes organizacionais, a juventude vivencia as regras empresariais da concorrência desde a pré-escola: como nos “mercados”, agora a escola tem “ganhadores e perdedores” (Ravitch, 2013). O lema “educação para todos” tem, agora, um complemento “educação para todos os que acumulem mérito nas avaliações”.

Não importa a engenharia que se crie para alinhar padronização, avaliação censitária e responsabilização, o fato relevante na disputa da escola, hoje, não é tanto o seu resultado quantitativo face a uma meta estipulada, mas o que ele encobre: a vivência da concorrência pelos “gestores”, professores e estudantes. Importa a “formação” da juventude em uma ambiência concorrencial gerada pelas avaliações sucessivas feita em um processo contínuo de accountability que os leve à crença de que é natural a existência de ganhadores e perdedores em todos os processos sociais e que estes são produtos derivados da existência ou não do “esforço pessoal” – nada mais.

Dizemos que a reforma empresarial não se importa com os resultados quantitativos que proclama e isso pode causar reações de indignação. No entanto, se considerarmos as evidências que demonstram que a introdução da política educacional da reforma empresarial nas escolas não tem apresentado melhoria relevante nem mesmo ao nível quantitativo nos países que vivem esta realidade neoliberal há muitos anos (Koretz, 2017) (Freitas, 2018), veremos que tais resultados negativos ou indiferenciados destas políticas privatistas não produziram uma autocrítica nestes reformadores, mas apenas a reafirmação das mesmas teses, mesmo quando os dados não permitem suportar a recomendação de tal política educacional.

No entanto, nota-se que, associado a tais resultados quantitativos pífios, está o crescimento da segregação escolar (Freitas, 2018) sem que isso seja considerado, de fato, um problema social no interior destas políticas, supostamente voltadas para combatê-la. O que mantém, então, tais políticas sendo recomendadas pelas agências internacionais e pelos seus adeptos, motivando que mais e mais países entrem nesta roda? Estaria a segregação escolar, apesar dos discursos, sendo naturalizada pela lógica da meritocracia?

Continua no próximo post.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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3 respostas para A velha razão do mundo (em apuros) – I

  1. Marlon disse:

    Excelente texto, professor.
    A luta por exterminar as ciências humanas das escolas é claramente ideológica. O currículo que os neoliberais da educação estão querendo impor retorna aos modelos tradicionais de Dewey, só que agora, com uma nova roupagem digital e um discurso meritocrático. Incentivar a competição dentro da escola só abre espaço para o aumento da intolerância e discriminação dos mais pobres. O resultado será a evasão escolar nas escolas públicas, aumento do número de analfabetos funcionais e violência.
    Tempos difíceis…

    aguardando a continuação do texto…
    abraço

  2. Pingback: Educação em debate, edição 235 – Jornal Pensar a Educação em Pauta

  3. Giovane ramos disse:

    excelente mesmo!!!
    obrigada.

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