O bumerangue do populismo autoritário

À medida que as ameaças à democracia vão se consolidando com a atuação da “nova elite” que assumiu o poder em 2019, constituída por uma aliança que reuniu principalmente conservadores, neoliberais e militares, vai também ficando mais claro para a população que o mal-estar contra os políticos e governantes alardeado antes era, de fato, um mal-estar contra à própria democracia.

Se foi difícil mobilizar as pessoas a favor deste ou daquele partido, a favor deste ou daquele político atingido, à medida que a agressão se revela contra a democracia liberal e suas instituições, mais fácil fica, no entanto, unir as pessoas e mobilizá-las a favor da democracia. Os ataques vão tomando a forma de um “tiro pela culatra” – para usar (intencionalmente) a expressão militar – em tempos de permanentes “advertências” de militares. Ou ainda um verdadeiro bumerangue – objeto que, quando lançado, pode voltar e atingir a própria cabeça do lançador.

Quanto mais as Forças Armadas entrarem neste processo e se atolarem no governo, como ademais já o estão, com 3.000 cargos sendo ocupados por militares, mais ficará claro que, neste momento, o jogo foi revelado: o que está em questão é a democracia brasileira. A generalização desta percepção, especialmente pela juventude, muda o jogo. E são estas ações de agressão à democracia que vão facilitar esta percepção.

Está na hora de renomearmos o que chamamos, neste blog, de “populismo nacionalista” (com base em Eatwell e Godwin, National Populism: the revolt against liberal democracy, 2018) – quando caracterizamos a aliança conservadora, neoliberal, militar, e avançarmos nesta classificação: esta aliança, agora, está abertamente se apresentando como “populismo autoritário” (nos termos de Norris e Inglehart, Cultural Backlash: Trump, Brexit, and Authoritarian Populism, 2019).

Renomear não altera a análise de composição e finalidades que vínhamos fazendo antes, mas muda a ênfase de uma característica nacionalista, que continua a haver, para dar voz a uma característica marcadamente autoritária desta coligação. Isso permite também evitar o recurso a frases de efeito que não contribuem para esclarecer a real composição do governo Bolsonaro, como acusações genéricas de “fascismo”, “nazismo” – grupos existentes na base do populismo, mas minoritários na composição real do governo, mesmo quando se considera o “núcleo ideológico” sob influência de Steve Bannon e Olavo de Carvalho.

Para Norris e Inglehart os líderes populistas atuam de forma a ir derrubando as restrições à ação dos ocupantes do poder executivo, “alegando que eles, e somente eles, refletem a voz autêntica das pessoas comuns” (posição: 401) e que somente eles têm a capacidade para restabelecer a segurança do “povo”, povo este que se resume na sua “tribo” – aqueles que os apoiam. E prosseguem:

“Os valores autoritários misturados à retórica populista podem ser vistos como uma combinação perigosa para alimentar o culto ao medo. A retórica populista direciona as queixas tribais ‘para cima’ contra as elites, alimentando a desconfiança em políticos, considerados por eles ‘corruptos’; da mídia, acusada de ‘fake’ e de juízes vistos como ‘tendenciosos’, bem como partidos tradicionais “fora de seu alcance”, atacando a verdade e corroendo a fé na democracia liberal ” (Posição: 438).

Dessa forma, “quando os valores autoritários e a retórica populista são traduzidos em políticas públicas, a questão principal torna-se à necessidade de defender a ‘Nós’ (‘nossa tribo’) através de restrições postas a ‘Eles’ (‘os outros’)” (Posição: 457).

Em suma: é o “povo” em luta contra as elites, sendo guiado pelo líder, pelo “mito”. E para o caso de se questionar o tamanho deste “povo”, aduz-se e alardeia-se, então, o apoio militar.

O governo Bolsonaro é um governo de composição hibrida com filosofias sociais que apesar de divergentes, têm como uma de suas bases de união uma concepção autoritária: neoliberais com sua teoria da ditadura de transição (e com ‘granadas nos bolsos’), conservadores ortodoxos, religiosos autoritários que pretendem falar em nome de deus, e militares que agora se esmeram em sucessivas declarações de intimidação, alegando apoio de todas as Forças Armadas ao governo – apoio que é afirmado em um dia e negado no outro, mas que cumpre a função de manter uma das características fundamentais do populismo autoritário, ou seja, manter o medo e acuar as instituições democráticas, enquanto o projeto populista é construído no dia-a-dia ao sabor dos objetivos específicos das várias frentes políticas que compõem o governo. É assim que se deve interpretar as frases: “passar a boiada”, “colocar a granada no bolso do inimigo”, mandar “pender membros do STF”. “fechar o Congresso” etc.

As sucessivas declarações de militares no governo, que agora culminam com uma declaração conjunta de Bolsonaro, Mourão e Azevedo, este último Ministro da Defesa, consolidam este arroubo autoritário que tenta transformar Bolsonaro em um monarca que responde somente ao seu “povo”, com poderes para invocar as Forças Armadas em defesa de seu governo, tudo isso em reação a um Parecer exarado pelo STF em relação à interpretação do papel das Forças Armadas na democracia liberal.

Neste Parecer o Ministro do STF, Fux, dizia que “a missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”. E note-se que foi elaborado pelo Ministro Fux que goza da maior confiabilidade perante a “nova elite” governante, pois “in Fux we trust”. Em reação à posição de Fux, o governo redigiu um comunicado que diz:

“Lembro à Nação Brasileira que as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do Presidente da República, de acordo com o Art. 142/CF. As mesmas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

As FFAA do Brasil não cumprem ordens absurdas, como p. ex. a tomada de Poder. Também não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos.

Na liminar de hoje, o Sr. Min. Luiz Fux, do STF, bem reconhece o papel e a história das FFAA sempre ao lado da Democracia e da Liberdade.”

O tom é ameaçador: “lembro à nação”. Parafraseando Reynaldo Fernandes, é como se os militares se colocassem na posição de um paizão que dá bronca em seu filho: “Olha lá em moleque: não teste a minha paciência!!”

Este é um grave erro que o autoritarismo brasileiro comete – de novo. Portanto, já pode ser enquadrado como burrice. Se as análises desenvolvidas por Norris e Inglehart (2019) para a Europa e Estados Unidos podem ser de alguma ajuda para a realidade brasileira, e penso que sim, então, estes arroubos autoritários servirão para mobilizar as gerações mais jovens, que são mais abertas à democracia e aos valores liberais, para saírem em defesa da democracia, contra o populismo autoritário.

Para estes autores, pelo menos na Europa e Estados Unidos, o predomínio do populismo autoritário se vale de sua penetração em gerações mais velhas, ou seja, que nasceram entre 1950 e 1970. As gerações posteriores, livres dos problemas imediatos do pós-guerra e das necessidades materiais que se seguiram, favorecidas pelo desenvolvimento acelerado entre os anos 45-75, professam valores mais liberais e menos autoritários.

De certa forma, as manifestações do Black Lives Matter, recentes nos Estados Unidos, evidenciam a grande presença da juventude negra, mas também branca. No caso brasileiro, a emergência de lideranças democráticas jovens começa a ser sentida e mesmo jovens que se somaram a movimentos que conduziram ao predomínio do populismo autoritário, já se afastam do apoio ao atual governo.

Artigo de Reginaldo Prandi, em 2019, comentava um estudo de Mauro Paulino e Alessandro Janon que procurava caracterizar quem eram os apoiadores de Bolsonaro:

“À medida que a idade sobe, cresce a fileira de seguidores. São 5% na faixa de 16 a 24 anos, 9% na de 25 a 34 anos, 12% na de 35 a 44 anos, 16% na de 45 a 59 anos, e 19% na faixa de 60 anos ou mais. Nada de novo: conservadorismo e medo da mudança usualmente crescem com a idade.”

Leia aqui.

Uma pesquisa Datafolha recente, de abril de 2020, mostra a mesma tendência:

“Atualmente, Bolsonaro é mais reprovado entre os jovens na faixa de 16 a 24 anos (41%) e entre 24 a 34 anos (43%) do que entre os mais velhos, com 60 anos ou mais (33%).”

“Entre os mais jovens, 54% são a favor da abertura do processo de impeachment de Bolsonaro, índice que cai para 47% na faixa intermediária, de 35 a 44 anos, e vai a 34% entres os mais velhos, com 60 anos ou mais.”

Leia aqui.

O ponto positivo deste movimento atabalhoado de embate promovido pelo populismo autoritário brasileiro, além dele revelar sua verdadeira face anti-democrática sob o manto do combate à corrupção, é que ele vai gerar uma ampla reação na juventude, o que junto com uma crítica profunda das limitações da democracia liberal representativa, abre possibilidade para que ela possa liderar uma reflexão sobre como podemos avançar para a construção de formas ainda mais democráticas e mais igualitárias, que nos levem para além da própria democracia liberal representativa e seus problemas.

Temos que ser francos com a juventude: a democracia liberal representativa tem problemas, sim, mas a solução não se dá pelo populismo autoritário. A solução está em  criarmos formas mais igualitárias e mais democráticas ainda.

Esta é a disputa que deve interessar aos progressistas e à esquerda: uma disputa sobre o futuro, mas que está acontecendo agora. Um futuro cuja construção precisa ser acelerada em meio ao aprofundamento da crise global do capitalismo, antes que o mesmo caia sobre nossas cabeças.

Esta é uma batalha prática, sim, mas que não poderá ser levada a cabo sem que igualmente se tenha uma profunda batalha de ideias que precisa chegar até a juventude desmontando, por um lado, o populismo autoritário e, por outro, as receitas utópicas de um liberalismo radical que pretende exacerbar o individualismo, naturalizando a precarização da vida de milhões e a destruição do meio ambiente, enquanto constrói o conforto de uma nova elite meritocrática.

O populismo autoritário será derrotado e esta derrota será promovida pelas mãos das gerações mais novas a quem cabe, de fato, liderar a construção de uma nova democracia – mais igualitária e mais democrática.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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