Ensino Híbrido: quem controla os algoritmos?

A desregulamentação do ensino híbrido e seu enquadramento como metodologia de aprendizagem pelo CNE visa liberar e estimular o uso deste conceito em escala na educação básica e superior. A atual proposta do Conselho Nacional de Educação omite quaisquer considerações sobre os riscos de se colocar a educação brasileira sendo mediada por corporações que produzem sistemas híbridos e, neste sentido, é irresponsável – sem considerar ainda que é um recuo ao início do século passado aos conceitos da aprendizagem ativa, ou ao aprender a aprender que agora devem servir de base para a formação do empreendedorismo meritocrático na juventude.

As razões para esta corrida ao híbrido encontram seu fundamento menos em “evidência empírica”, a qual costumeiramente é alegada, e muito mais na necessidade de equiparar o mundo escolar ao mundo do trabalho. E claro, terá o efeito de fornecer um ambiente de segurança para os investimentos financeiros nas grandes corporações produtoras de sistemas de aprendizagem híbrida, consultorias, fundações e similares. O mercado educacional está em alta.

Os investimentos nesta área estão crescendo, por exemplo: a Arco Educação, empresa cearense que produz sistemas de ensino e distribui material para seis mil escolas no país, recebeu aporte de 830 milhões de reais dos fundos Dragoneer e  General Attlantic.

“Não por acaso o empresário cearense Ari de Sá Cavalcante Neto, fundador e CEO que colocou a empresa na lista de unicórnios (startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão) com a abertura de capital na bolsa americana Nasdaq, diz-se mais otimista hoje com o futuro da Arco do que antes da pandemia. “A oportunidade de crescimento que temos é ainda maior”, aponta.”

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Quando se fala em adaptar a educação às demandas do século XXI o que se quer é criar uma estratégia educativa para a juventude que prepare o trabalhador que está sendo esperado na cada vez mais estreita porta dos empregos da área empresarial. Aos “sobrantes” vítimas do desemprego estrutural e da precarização espera-se fornecer competências e habilidades socioemocionais para se virarem por conta própria como “empreendedores” – sem depender do Estado.

Para implementar um modelo flexível de educação da juventude, articulado com as novas realidades do mundo do trabalho é preciso criar uma nova materialidade nas escolas, fortalecendo as teses educacionais tecnicistas que levam a uma ampliação do controle técnico e político da escola, agora fazendo uso da adição de tecnologias da informação e da comunicação disponíveis (p. ex. ensino híbrido). A flexibilidade para integração de espaços e artefatos diferentes de aprendizagem disfarça o rígido controle de conteúdo que, via BNCC, viabiliza as competências e habilidades socioemocionais – ao mesmo tempo que retira a centralidade do magistério, introduzindo o planejamento da aprendizagem previamente estruturado em plataformas e sistemas de ensino digitais.

Chamar este movimento de “aprendizagem híbrida” tem a vantagem de não sugerir a eliminação do professor, erro frequente em outras versões tecnológicas fracassadas desde 1970, e sugere uma articulação de espaços e pessoas disfarçando o peso das plataformas de aprendizagem ou sistemas de ensino on line – foco principal que, em articulação com a BNCC, padroniza o currículo em todos os espaços envolvidos. Uma vez definidas as finalidades da educação, os meios expressam tais fins e para eles concorrem.

Este movimento que atende à necessidade de lidar com as contradições do capital que motivam as suas crises, reduzindo salários e postos de trabalho, elevando a produtividade pela introdução de tecnologia e consequente incorporação de novas áreas de atividades sociais ao mercado, atinge agora a mercantilização da própria “sociabilidade” em geral (Huws, 2014), ampliando a mediação por tecnologia, sob controle de grandes corporações transnacionais.

Nas palavras de Huws (2014, p.7) mais aspectos da vida são agora incluídos no mercado, ou pelo menos aqueles aspectos que interessam para gerar lucro, e que antes se encontravam fora dele. Isso inclui “a biologia, arte e cultura, serviços públicos e a sociabilidade.”

Neste processo de mudança, “os trabalhadores criativos foram convertidos em “produtores de conteúdo” (p. 8). E continua: “A colonização da sociabilidade pelo mercado não só gerou uma nova fonte de lucro, mas também penetrou na estrutura da vida social [das pessoas], minando a base da futura solidariedade.” (p. 11)

Huws acrescenta que “a comunicação social agora envolve, com efeito, o pagamento de um dízimo a essas empresas [que fazem a mediação tecnológica] por parte de todas as pessoas ao redor do mundo que tenha um contrato de telefone celular ou uma conexão à internet em casa – um número que continua a crescer exponencialmente.” (p. 13)

Ou seja, a própria sociabilidade, e nela a educação, tornou-se agora mediada por tecnologia e é objeto de lucro. Além do comércio de sistemas de ensino, imaginem lançar às redes de comunicação milhões de alunos e professores consumindo informação via artefatos. E não se trata apenas do tempo que o aluno passa na escola – as corporações vão querer também o tempo de estudo em casa. Ainda seguindo Huws:

“Os fabricantes cujas marcas estão expostas [nos equipamentos que usamos] representam a ponta de um iceberg de trabalhadores que abrange os mineiros que extraem os minerais que são suas matérias-primas, os trabalhadores que os montam, operários de transporte, operários de armazém, operários, engenheiros de software, funcionários de call centers e muito mais. Depois, ainda há a infraestrutura: os satélites e cabos (muito sólidos) e roteadores Wi-Fi que permitem que todo esse conteúdo digital aparentemente evanescente seja acessível de forma invisível através de ondas de rádio; e a rede elétrica fornecendo a energia sem os quais nada poderia funcionar.” (p. 13)

Estas mudanças, criam pressões sobre o sistema educacional visando preparar a juventude segundo as novas necessidades do mundo do trabalho, afetando tanto o currículo de formação de professores, como sua atividade como professor, e também o currículo dos estudantes ao longo de todo sistema de ensino.

“[As alterações globais da] atividade dos trabalhadores culturais e do conhecimento e aqueles do serviço público envolvem: a intensificação ampliada do trabalho; a diminuição da autonomia e da criatividade; a padronização dos processos de trabalho; e pressão para se “desempenhar de acordo com padrões cada vez mais rigorosos estabelecidos de cima para baixo, definidos em termos de protocolos, metas de desempenho e padrões de qualidade” (Huws, 2014, p. 40).

Como já alertamos anteriormente, este processo vai camuflar as atuais formas de exclusão sob o manto das plataformas de aprendizagem que incluem em seus algoritmos decisões tomadas por planificadores que tentam imitar o trabalho do magistério em sala de aula e antecipar as dúvidas dos estudantes e os caminhos que eles podem tomar para aprender, amplamente irrigado por avaliações constantes embarcadas nas plataformas (leia mais aqui). Quebram ou reduzem a intersubjetividade necessária ao processo de aprendizagem, expropriam do professor a atividade de organizar o trabalho dos estudantes e converte o magistério em mero tutor de plataformas que integram vários espaços e recursos.

Esta padronização do currículo e depois das decisões e caminhos de aprendizagem via algoritmos tornam estas plataformas uma fraude quando se autodenominam de “ensino personalizado”. Não são. De fato, as opções e caminhos estão padronizados em algoritmos aos quais não temos acesso – para isso, tiveram que ser, antes, despersonalizados.

A questão é (1) se as plataformas fazem o que os vendedores dizem que elas fazem e (2) quais as consequências para os estudantes que seguem as decisões destes planificadores embutidas nos algoritmos.

A “nova” exclusão, agora, pode vir via algoritmos. Já começam a aparecer evidências de que sistemas baseados em algoritmos usados pela polícia de New York para prever crimes em áreas urbanas e algoritmos usados por algumas universidades americanas para fazer seleção de ingresso em pós-graduação causam vieses perniciosos. Ademais, estão sempre presentes, hoje, as críticas aos algoritmos de grandes corporações da mídia que fazem com que determinadas notícias de determinadas fontes sejam mais visíveis que outras. Quem controla os algoritmos?

A digitalização do processo educativo carregará para a plataforma, a mesma “exclusão por dentro”, já apontada por Bourdieu para a escola capitalista. A desigualdade social não foi eliminada e vai ser transferida para o próprio ambiente tecnológico das plataformas expresso em trilhas diferenciadas de progressão, onde cada um avança segundo suas “possibilidades” e “esforço pessoal”.

Porém, o estudante que pode, vai avançar e ser estimulado a novos desafios e vai receber enriquecimento da aprendizagem e quem não avança ou segue um ritmo mais lento, vai ficar limitado a trilhas básicas e, no limite, dependente de um “professor” que, agora, estará desqualificado pela expropriação dos conteúdos e métodos em seu trabalho.

E ainda existirão os problemas ligados à privacidade e armazenamento de dados dos estudantes e também os graves problemas relacionados ao tempo de exposição dos estudantes às telas – na escola e em casa (leia mais aqui).

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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