MacLean: salvar o capitalismo da própria democracia – I

À medida que a miséria cresce e os miseráveis se organizam, o capitalismo reage e encurrala os progressistas que defendem a justiça social. Por que os progressistas estão surpresos com as mudanças e com sua velocidade? Por que há uma paralisia no ar? MacLean fornece elementos para se pensar que a razão desta situação é que mudaram as próprias regras, justificativas e fundamentos do jogo liberal.

O golpe à brasileira é só uma destas manifestações. E a mudança surpreende e desarticula aquilo que até agora foi usado como justificativa para fazer avançar a ordem social. Não se podia imaginar semelhante viragem.

Você acha que devemos buscar a justiça social e que é necessário que haja uma maior distribuição de renda? Você acha que a vontade da maioria deve prevalecer sobre a minoria em processos decisórios democraticamente conduzidos? Você acha que os mais desfavorecidos precisam da atenção dos governos? Se você ainda acredita em coisas como estas, você está fora do que a nova direita militante e intransigente nos reserva.

Empoderada cada vez mais em nível mundial, ela chega até nós pelas mãos do DEM e de setores do PSDB e do PMDB. Seu representante mais qualificado é João Doria, Prefeito da cidade de São Paulo, uma mistura de Trump com Bloomberg. Para esta visão, muito bem apresentada por Nancy Maclean em Democracy in Chains, alguém tem que defender aqueles que pagam impostos e protegê-los das ações de governos que cedem à pressão das maiorias compostas por desfavorecidos que se apoderam indevidamente dos impostos e retiram cada vez mais recursos daqueles que merecidamente conseguem ganhar a vida pelo mérito. Daí a atitude convicta, agressiva e beligerante da nova direita. Para tal pensamento, não há fundamento moral em retirar dos ricos para cuidar dos desfavorecidos, acostumando-se estes a viver dependentes do Estado, enquanto os cidadãos honrados, honestos e trabalhadores são roubados pelo Estado através do aumento de impostos.

Se você está surpreso, leia o livro de N. Maclean. A consigna acima, criada por N. Maclean, resume bem os tempos de hoje quando se instaura uma ditadura do mercado sobre o cidadão, com o objetivo de impor um conjunto de proposituras articuladas em torno do que se chama a “nova direita radical”.

Não gosto do termo “direita radical”, pois chamá-la de radical dá a impressão que existe outra mais boazinha, o que não é verdade. Todas visam à primazia do mercado e a liberdade irrestrita para acumular. Mas hoje, a direita está se dividindo entre uma direita que atuou relativamente dentro do jogo democrático liberal e uma direita que quer “salvar” o capitalismo da própria democracia liberal e impor ao conjunto da sociedade uma forma de conceber o mundo – seja por golpe ou por outros meios. Pode ser que esta mudança nos fundamentos da direita seja a razão de nossa surpresa, não importando quanto em teoria ela pudesse ser pressentida.

A nova direita avança para um entendimento da sociedade que seria considerado até pouco tempo desprovido de ética. E talvez seja exatamente esta sua característica marcante: não importam as consequências quando se trata de defender interesses econômicos. Não que isso seja exatamente uma surpresa. Provavelmente o que choca é a defesa explícita e aberta da tese de forma militante. Ela inclui limitar ou dificultar o voto do cidadão, ou pelo seu oposto, facilitar para que o cidadão não se manifeste nas eleições; impedir os processos de organização social dos mais desfavorecidos; não transferir impostos para os menos favorecidos; destruir a organização dos trabalhadores, a atuação dos sindicatos e confederações; destruir a atuação e organização dos movimentos que lutam pelos direitos humanos;  atuar contra os imigrantes e contra ações de preservação do meio ambiente; desregulamentar a atuação da corporações; privatizar tudo que for possível; propor formas de controle jurídico-parlamentar que evitem o impacto de decisões democráticas nos interesses do capital, entre outras. Tudo isso em alto e bom som.

Este movimento distingue-se do neoliberalismo de Milton Friedman, Ayn Rand e Friedrich A. Hayeck pela sua forma de atuação política, mas o incorpora. Para MacLean, ele se desenvolve desde a década de 50 nos Estados Unidos, tendo como centro o estado de Virgínia, em uma reação à decisão da corte suprema americana que determinou a dessegregação racial das escolas de forma “deliberadamente rápida”. A peça chave que Mclean introduz através de seu estudo é a recuperação da figura de James McGill Buchanam (conhecido como sendo da “escola de economia política de Virgínia”) e seu papel na estruturação de um projeto de âmbito nacional que impulsionasse tais ideias. Toda a documentação referente a este movimento conduzido por Buchanam, falecido em 2013, está na  George Mason University em Virgínia, onde ela pesquisou.

Deste esforço faz parte, além das Instituições dos bilionários irmãos Charles e David Koch, um grupo de parlamentares conhecido como American Legislative Exchange Council (ALEC) o qual produz “modelos de leis” para o Partido Republicano e assessora os legislativos na implementação destas.

O palco de atuação de Buchanam foi seu Center for Study of Public Choise financiado pelos Kochs. Seu objetivo era treinar uma nova geração de pensadores para lutar contra a decisão da corte suprema americana que determinara a dessegregação racial das escolas e que organizasse tais ideias em um movimento nacional. A lógica deste movimento é dedicada a proclamar que a “liberdade” é igual a “capitalismo sem restrições”, sem interferência de governos que acabam compromissando-se, por interesses nos votos, com maiorias fracassadas. E, neste sentido, eles consideram que a democracia falhou em preservar tal “liberdade”.

Um conjunto de outras organizações somam-se a estes esforços: Cato Institute; Heritage Foundation; Citizens for a Sound Economy; Americans for Prosperity; Freedom Works; Club for Growth; State Policy Network; Competitive Enterprise Institute; Tax Foundation; Reason Foundation; Leadership Institute – além das indústrias dos irmãos Koch. Mike Pence, o atual vice-presidente dos Estados Unidos na gestão Trump, trabalhou com muitas destas organizações ao longo de anos e compartilhou sua agenda.

Por volta de 1990, os irmãos Koch concluíram que finalmente tinham um conjunto de ideias que durante muito tempo procuraram. McLean sintetiza a proposta como uma tentativa de “salvar o capitalismo da própria democracia”.

Como característica marcante, revela a autora, este grupo entende que, não sendo maioria, isso deve ser feito nos bastidores e não às claras. Para Kock, diz Maclean, “O povo americano não vai apoiar este plano, então para ganhar deve-se trabalhar atrás do cenário, usando uma estratégia oculta ao invés de uma declaração aberta do que se quer”.

Uma das ideias centrais de Buchanam é que a redistribuição de renda através de impostos que obrigam alguns a financiar o bem comum ou a promover a justiça social para outros, não passa de uma tentativa de tomar pela força algo que tais “tomadores” não tem moral para exigir, ou seja, tomar o fruto do esforço pessoal dos outros que foram bem-sucedidos. Para ele, proteger o bem-estar é proteger o indivíduo destas formas de “gangsterismo” estatal legalmente autorizado que retiram o fruto do seu trabalho a título de promover a justiça social. Buchanam escreveu em 2005: uma pessoa que fracassa em guardar dinheiro para suas necessidades futuras “deve ser tratada como um membro inferior da espécie, similar … aos animais que são dependentes”.

Para Buchanam todo o mal começa quando os indivíduos, que isoladamente não têm poder, se juntam para formar movimentos sociais para se fortalecerem numericamente e influenciar o governo fazendo com que este ouça seus desejos e atue por eles. Tais movimentos incluem a organização dos trabalhadores e os movimentos de defesa dos direitos humanos. Ele pensa que toda vantagem que um grupo majoritário pode, devido ao seu número, impor a uma minoria não constitui persuasão, mas sim coerção sobre a minoria, uma violação da liberdade individual daqueles que honestamente pagam impostos. Contra isso, é preciso parar a “corrupção governamental” que é feita por grupos organizados que pressionam e tornam os membros do governo receptivos a tais demandas. O inimigo é a organização coletiva e o próprio governo.

(Continua no próximo post.)

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
Esse post foi publicado em Assuntos gerais, Doria na Prefeitura de SP e marcado , . Guardar link permanente.

2 respostas para MacLean: salvar o capitalismo da própria democracia – I

  1. Prof. Luiz Carlos de Freitas, é preciso fazer eco para fortalecer a luta, que será longa e árdua. Peço, gentilmente, que veja: https://sinduffs.net/2017/08/17/nota-de-repudio-a-perseguicao-politica-de-servidores-do-campus-de-abelardo-luz-do-ifc/
    Um abraço, professor.

  2. Pingback: Opinião – O beco sem saída da “direita” | Milton Alves

Deixe um comentário