Diálogos a propósito da Lemann – I

Neste primeiro post, a questão inicial é sobre o papel das fundações privadas na educação (vamos dizer, uma nova geração de fundações) baseadas em sua relação com empresas privadas – seja diretamente, seja indiretamente.

É legítimo que um setor da sociedade, os empresários, tenha interesse na educação. A Fundação Lemann, por exemplo, é uma entidade cujo financiamento deriva do maior bilionário do Brasil, o Sr. Jorge Paulo Lemann. A família Lemann opera no âmbito empresarial. Calcula-se a fortuna do Sr. Lemann em cerca de 50 bilhões de reais. No site da Fundação pode-se ler que “A Fundação Lemann é uma organização sem fins lucrativos, criada em 2002 pelo empresário Jorge Paulo Lemann”. O Conselho da Fundação é formado por: Jorge Paulo Lemann – (presidente); Paulo Lemann; Peter Graber; Prof. Dr. Peter Nobel; Susanna Lemann. Como bem lembra a carta da Fundação, ela é familiar e não usufrui de isenção fiscal.

A atividade empresarial do Sr. Lemann é descrita na mídia como:

“Jorge Paulo Lemann é novamente o homem mais rico do Brasil em 2014, segundo levantamento da revista “Forbes Brasil” (…). Ele, que já esteve empatado com Eike Batista em 2012, liderou o ranking dos ricaços brasileiros também no ano passado. Principal acionista da Ambev, possui uma fortuna estimada de R$ 49,85 bilhões, de acordo com a revista.” Nesta mesma reportagem se lê: “Fortuna: R$: 49,85 bilhões, Local de nascimento: Rio de Janeiro, Idade: 74 anos, Origem do patrimônio: cervejaria/investimentos”.

Não há nada de errado com isso, agreguemos. Podemos mesmo dizer que o Sr. Lemann é o nosso Bill Gates. Também lá na matriz (EUA), um dos homens mais ricos do país criou sua própria Fundação para aplicar excedente de capital na Educação, é a Fundação Bill & Melinda Gates.

A questão a examinar as possíveis implicações que isso tem para a educação brasileira.

Esta nova geração de fundações é recente. É uma área que está em estruturação. O que precisa ser definido é como e onde vai se dar esta relação com as fundações e o poder público. É sempre instrutivo ver o papel que tais fundações têm em países que já lidam com a questão. Nos Estados Unidos a Fundação Bill Gates, por exemplo, domina hoje, segundo Diane Ravitch, o Ministério da Educação americano, no sentido de que é ela quem dita a política educacional americana. Não é só ela, além da Gattes, há mais uma meia dúzia de porte (p. ex. a dos Waltons). A tradição lá é maior.

Obviamente, isso coloca a elaboração da política pública sob a ótica de um único setor da sociedade, configurando uma apropriação privada da formulação da política. Se temos acordo em que este não deve ser o caminho, já é um grande passo.

O outro aspecto, que não desenvolverei aqui mas que tratamos diariamente neste blog, diz respeito às formas como tais fundações visualizam as mudanças educacionais. Aqui talvez estejam nossas maiores diferenças. Usualmente, as fundações ligadas direta ou indiretamente a empresas, tendem a lidar com as redes de ensino como se elas fossem mini empresas. Daí que as soluções propostas usualmente coloquem ênfase na questão da gestão.

No Brasil esta ponte entre os gestores públicos e as fundações está em construção. Sua natureza ainda não está clara. Um exemplo são as relações das fundações com o CONSED – Conselho de Secretários de Educação. Ou ainda com a UNDIME – SP. Outro exemplo é o acordo da CAPES com a o Instituto Airton Senna. Ou ainda o recente chamamento do INEP a uma parceria com a iniciativa privada para disponibilizar dados para as escolas.

Rigorosamente falando, para citar um exemplo, não deveria ser a Fundação Lemann e a Meritt que deveriam disponibilizar dados oficiais de avaliação no Qedu, mas sim o próprio INEP. Há 20 anos fazendo avaliações, não se explica porque este órgão foi especializando-se apenas em fazer testes (com terceirizadas) e não em analisar dados e dispô-los de forma organizada e de fácil acesso. Como tarefa de Estado, a ação do INEP não pode ser substituída pela ação da Fundação Lemann ou outra. O Estado não pode ir repassando sua atuação para as fundações – mesmo para as sem fins lucrativos.

A iniciativa privada e as fundações podem investir em educação, mas, é preciso que elas não tomem o lugar do poder público. Do ponto de vista da democracia não podem, e do ponto de vista de sua natureza também não. As fundações são entidades que estão sujeitas a variações impostas pelo mercado. Suponha que Eike Batista tivesse uma Fundação? Como ela ficaria depois da queda deste conglomerado de empresas de Eike que disputava com os Lemann o lugar entre os mais ricos do Brasil? Educação pública não pode apoiar suas ações em benemerências que podem mudar segundo os humores das bolsas de valores.

Como adverte Diane Ravitch, a democracia (mesmo a liberal) exige que o Estado esteja à frente dos investimentos e da articulação das políticas públicas e não delegue e nem permita que um setor específico da sociedade se aproprie privadamente da condução das políticas públicas. Nem delas e nem de seu financiamento. Como dizem os signatários de um manifesto americano:

“A educação pública é um bem público. A educação pública não deve jamais ser enfraquecida pelo controle privado, desregulamentação ou especulação. A manutenção do caráter público das escolas é o único caminho para garantirmos que todo e qualquer aluno receba uma educação de qualidade. Sistemas educacionais devem funcionar como instituições democráticas que correspondam às expectativas e necessidades dos alunos, professores, pais e comunidades.”

Outro ponto é o papel que tais fundações cumprem em relação à pesquisa – assunto que está mais ligado à questão atual com a Lemann. Vamos acertar o entendimento de que as fundações podem legitimamente serem constituídas para fazer advocacia de ideias – ou seja para defenderem um determinado entendimento de como melhorar a educação, por exemplo. Nada contra. Mas o que não pode ser feito é ter estudos que não cumprem exigências metodológicas e usá-los como base para fazer tal advocacia. Aqui ainda falamos em geral e não em relação ao estudo da Fundação Lemann mencionado nesta discussão por Samuel Pessoa, pois o faremos em outro post. Uma fundação pode fazer advocacia, os seus estudos não. Eles precisam revelar, à luz da boa metodologia, os achados que referendam ou contrariam as ideias que uma fundação advoga.

Isto é tão mais necessário quanto se trata de influenciar políticas públicas. Aqui a responsabilidade é maior ainda. O instrumento não pode ser um estudo isolado, mas de preferência ser uma meta-análise de dados. A discussão com a Lemann aparece no contexto do debate com Samuel Pessoa. De fato, quem toma indevidamente o estudo da Lemann e o converte em estudo orientador de política pública é Samuel Pessoa. Daí porque o debate com a Lemann é apenas um efeito colateral. Mas é claro que cabe a quem disponibiliza um estudo, alertar para os limites do mesmo.

Portanto, para tirar a questão da frente, não se trata aqui de ser tolerante ou intolerante com os empresários quando se aproximam da educação. Trata-se de discutir como, onde e o papel.

Finalmente, resta apontar neste post que, se para os grandes magnatas dinheiro não é problema, isso não é assim para os empresários de menor porte. Estes precisam de dinheiro e de mercado educacional para seus produtos – inclusive das verbas públicas. São estes, em geral, que entram diariamente nas Secretarias de Educação do país para vender seus produtos e serviços, em um verdadeiro assédio nacional por acesso a verbas públicas. Os primeiros – os grandes ricos – atuam ideologicamente e não precisam de verbas públicas, e os segundos – os do faturamento, – atuam comercialmente. Mas os segundos navegam nas ideias defendidas ideologicamente por grupos de empresários que, não precisando de verbas públicas, criam a “legitimidade” para acesso de outros empresários a tais verbas públicas.

Como este post já está longo, continuaremos em outro.

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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