Os acontecimentos da semana envolvendo a área econômica (Guedes) e o presidente, começam a evidenciar, mais claramente, o que já era apontado desde o início deste governo em 2018: neoliberalismo e populismo, ingredientes básicos deste governo, têm contradições e constituem um foco de instabilidade, junto com a pauta dos costumes, apesar de ser esta última mais visível. A agenda dos costumes que divide liberais e conservadores tem como ser minimizada (em nome das reformas) mas o conflito no plano econômico não, pois ele atinge as próprias reformas.
É verdade que o neoliberalismo conversa com o populismo. Vê a democracia apenas como um adereço do capitalismo. Qualquer ameaça ao livre mercado serve como desculpa para sustar temporariamente a democracia liberal até que o mercado esteja novamente a salvo. Daí sua junção com os militares, considerados os guardiães do livre mercado, os quais devem cuidar de neutralizar os “inimigos internos” do neoliberalismo (se preferirem, do liberalismo econômico ou liberalismo radical). Este é o eixo central no qual o “mercado” deposita sua confiança.
O neoliberalismo e seus capangas, como se viu esta semana, desdenham do Congresso que, para eles, é uma instância suspeita, pois convive com grupos organizados da sociedade que interferem com a produção das leis, impondo regras insensatas que comprometem o futuro do livre mercado (ou seja, da “nação”).
E o populismo reacionário? O populismo tem mais a característica de um “movimento” de natureza híbrida que congrega conservadores, conservadores de agenda liberal na economia, intervencionistas e até grupos neonazistas. Nas palavras de Eatwell e Goodwin (2018):
“O populismo nacionalista é uma ideologia que prioriza a cultura e os interesses da nação, e que promete dar voz a um povo que sente que foi negligenciado, mesmo desprezado, por elites distantes e muitas vezes corruptas. Longe de ser antidemocrático, o populismo – como argumentam estudiosos como Margaret Canovan – é uma resposta às contradições da democracia liberal, que por um lado promete um governo ‘redentor’ pelo povo, mas que na prática se baseia cada vez mais em elites tecnocráticas concorrentes e “pragmáticas” cujos valores são fundamentalmente diferentes de muitos daqueles que governam (…). Enquanto a visão “pragmática” vê a democracia como um sistema elitista de instituições e regras para lidar pacificamente com os conflitos, a abordagem “redentora” vê a democracia como uma “salvação” por meio de formas mais diretas de política, identificando o povo como a única fonte legítima de autoridade.” (Posição 915/922.)
Daí o permanente conflito entre o populismo e as instituições da democracia liberal representativa. Este é um dos pontos de convergência entre neoliberalismo e populismo, ou seja, o descaso pela democracia liberal representativa que no neoliberalismo aparece com o conceito de F. Hayek de “ditadura de transição”, que era como ele caracterizava a ditadura militar brasileira e a chilena – uma fase que conduziria à verdadeira liberdade, fruto da instalação do livre mercado pela força.
O neoliberalismo não é necessariamente anti-democrático, desde que o Congresso defenda o livre mercado e o proteja de grupos que ele considera “corporativos”. Isso não significa, de fato, o fim do “corporativismo”, mas sim a criação de um “neo-corporativismo de Estado” de base empresarial.
Esta visão de uma “democracia relativa” também está refletida na expressão do general Heleno desta semana, ao dizer “foda-se” para o Congresso Nacional. Lembremo-nos que ele era o ajudante de ordens do General Silvio Frota, líder dos que eram contrários à abertura política conduzida pelo General Geisel. Ambos foram afastados de suas posições por Geisel.
Apesar destas convergências e da necessidade prática de uma união com propósitos eleitorais, neoliberalismo e populismo têm uma contradição insuperável e que aparece esta semana no que pode ser o início de um conflito entre Guedes e Bolsonaro, ambos representantes destas tendências.
Começa a ser difundida a ideia de que Guedes é apenas uma imposição eleitoral. De fato, o neoliberalismo (o mercado) foi obrigado a compor com Bolsonaro. Para o neoliberalismo, as reformas econômicas e administrativas do Estado são o ponto central e também a razão de tolerarem Bolsonaro, já que nenhuma outra liderança liberal à época das eleições tinha as características autoritárias necessárias para conduzir estas reformas, vencendo resistências consideradas corporativas instaladas no Congresso. A contradição a que nos referimos pode ser melhor esclarecida recorrendo-se a F. Bastiat (1849):
“Consequentemente um mau economista persegue um presente curto e bom, que se sucederá por um grande mal a vir, enquanto o verdadeiro economista persegue um grande bem a vir, — ao risco de um pequeno mal presente.” (Introdução, posição 23.)
Esta é a ilusão que as reformas neoliberais vendem há 40 anos sem resultados. Não obstante, esta visão se choca com a do populismo reacionário que promete ao povo (e em conexão direta com o povo) atender as suas demandas e, que para se manter no poder, depende de cumprir em tempo hábil suas promessas. Nos tempos em que Steve Bannon ainda assessorava Trump, esta era a regra de ouro que ele recomendava para garantir a reeleição daquele mandatário: cumprir promessas. Não foi por outra razão que Olavo de Carvalho – um anti-globalista como Bannon – criticou a indicação de Guedes. Mais recentemente, Bebianno, que participou do governo Bolsonaro, resume o drama dos neoliberais no poder:
“Bolsonaro “não acredita no liberalismo econômico, acho que nem compreende bem os conceitos e fundamentos envolvidos”. “A verdade é que ele encontrou no Paulo um bom cabo eleitoral, que o ajudou muito a encontrar a aceitação do mercado. Mas, no fundo, o Jair não tem nada de liberal”, afirmou.”
Mas a questão vai além da aceitação do neoliberalismo por Bolsonaro. Ocorre que a falta de resultados econômicos da política de Guedes não advirá de sua competência, mas do fato de que o neoliberalismo, onde foi aplicado, não gerou a tal prosperidade prometida para o “povo”, tendo atendido mais aos próprios financistas. A expectativa neoliberal era que se os ricos prosperassem, o crescimento iria “transbordar” dos cofres dos ricos para o dos pobres. Mas isso não ocorreu – o Chile é um exemplo. E terá dificuldade de ocorrer com o PIB de 2% que Bolsonaro esta cobrando de Guedes para este ano.
A classe média, principal apoiadora do populismo reacionário, continua com a renda comprimida, mesmo em países de longa tradição neoliberal. O neoliberalismo se transformou de solução em problema. Como afirma N. Fraser (2019):
… “as pessoas estão dizendo que não acreditam mais nas narrativas neoliberais reinantes. Eles não têm fé nos partidos políticos estabelecidos na centro-esquerda ou na centro-direita que as proclamaram [no caso americano]. Eles querem tentar algo completamente diferente. Esta é uma crise de hegemonia!” (Posição 398.)
Ou seja, no caso americano (e talvez também no caso da Inglaterra), o neoliberalismo fez presidentes cuja politica neoliberal levou ao populismo de Trump. No entanto, no caso brasileiro, neoliberalismo e populismo chegaram juntos ao poder e com sinais trocados: é o populismo que está na presidência.
Isso potencializa uma crise “ao vivo” entre estas visões. O risco é evidente: as reformas econômicas neoliberais ao não conseguirem “transbordar bem-estar” em direção à classe média, potencializarão e fortalecerão as teses de Bolsonaro, fazendo com que – na ausência de uma reação das forças democráticas – ele (e seu novo partido) se coloquem cada vez mais como alternativa radical ao existente.
Bolsonaro explorará cada vez mais isso separando-se, quando puder, de Guedes e de sua política, e procurará criar mecanismos de comunicação direta com a população por fora da representação do Congresso Nacional. A crise desta semana com Guedes pode ser o início da demarcação de responsabilidades: sobre Guedes, sugerirá nas redes que foi uma imposição eleitoral que não pode evitar. Portanto, a política em relação a ele será cada vez mais uma política de “contenção de danos”.
O liberalismo, expressão política do capitalismo (em suas versões centrista e neoliberal) falhou, expondo as contradições insuperáveis de um modelo de organização social que já tem mais de quatro séculos e abrindo caminho para o populismo reacionário. Talvez não tenhamos como abrir mão de um retorno ao liberalismo centrista (desenvolvimentista ou social-democrata) no plano imediato, como forma de recuperar minimamente a decência, mas isso não será suficiente se não começarmos a discutir uma alternativa ao próprio liberalismo (um novo padrão de humanidade), como forma de ocupar o espaço político que o populismo reacionário está construindo. Isso não se consegue sem uma grande frente política que mobilize a população.
Que análise lúcida, competente, contribuindo muito para a compreensão das forças em disputa no governo que, ao longo da semana que termina, se explicitaram tanto! A questão é organizar uma grande frente política que mobilize a população. Será que as pessoas estão dispostas a abrir mão de algumas certezas, ainda que temporariamente, para fazer uma “conta de chegar” a essa frente política?
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