De novo, Samuel?!

Se alguém afirmar que a lua é de queijo, não cabe ao ouvinte demonstrar o contrário, mas sim a quem fez a afirmação. Li isso em algum livro de metodologia. Mas, vamos lá.

Quando Samuel Pessoa escreve na Folha sobre o que ele entende, ou seja, sobre economia, é um alívio. Mas, o problema, é que ele insiste em falar do que não entende, educação. A Folha deixa pois faz advocacia. E aí, neste dia, ele consegue estragar a semana de qualquer estudante iniciante de Pedagogia, devido ao primarismo e à advocacia de ideias confundidas com ares de ciência.

Hoje, 14-9-14, ele escreve na Folha de São Paulo o artigo “A escola pública que funciona” onde diz que “já sabemos quais práticas são eficazes no ensino, agora é preciso que sejam adotadas pela rede pública”. E por que não são adotadas? Segundo o autor, basta “saber o que precisamos fazer para que todas as escolas das redes públicas de ensino copiem essas práticas”. Brilhante! É assustadora a circularidade do artigo: sabemos as práticas – precisam ser adotadas – não sabemos como fazer – mas sabemos as práticas.

Primeira questão: sabemos? Quais são as fontes de Samuel? Em primeiríssimo lugar, a Fundação Lemann, que é uma organização familiar. É instituição de advocacia, ou seja, tem compromisso com as ideias dos reformadores empresariais  sobre como melhorar a educação e busca evidência que comprove tais ideias, usualmente, sem levar em conta o contraditório – ou seja, a evidência empírica contrária. É uma retransmissora das ideias dos reformadores empresariais americanos em solo brasileiro.

O relatório da Lemann está aqui. Como o leitor poderá ver, trata-se de relatório publicado pela própria Lemann sem que tenha passado por revisão independente. (Veja aqui, resposta da Fundação Lemann). É típico deste tipo de Fundação voltada para a advocacia de ideias. Como um Trabalho de Conclusão de Curso até seria aceito, mas como relatório conclusivo que possa orientar a politica educacional brasileira, como quer Samuel, é pífio, a começar pela bibliografia apontada ao final do relatório. Um relatório mede-se também pelo fato dele incorporar ou não evidência empírica contrária e mostrar que conhece a literatura da área. Não é o caso.

Como a Fundação Lemann não se constitui em autoridade de pesquisa, ele logo procura associar os resultados da Lemann a alguma autoridade. Nada melhor do que Harvard. Segundo Samuel, “apesar de algumas diferenças, há muitas similaridades entre a lista do estudo da Fundação Lemann e os resultados de um estudo de Dobbie e Fryer”, de Harvard.

Como é típico dos reformadores empresariais, eles não entram a fundo nos estudos que citam, quando os citam. Nem o nome do relatório é dado no artigo, mas supomos tratar-se do estudo chamado: “Getting Beneath the Veil of Effective Schools: Evidence from New York City “, de Will Dobbie e Roland G. Fryer Jr., 2013.

Este estudo apareceu pela primeira vez em 2011 como um working paper da NBER e já tinha sido desancado por Bruce Baker do ponto de vista técnico:

“Vamos ser muito claro aqui – simplesmente testar a correlação entre gastos e uma medida de desempenho – comparando escolas de gastos superiores e inferiores e os seus resultados para ver se as escolas de gastos mais altos têm medidas de eficácia mais elevadas – diria para nós POUCO OU NADA, ainda que os dados fossem exatos, precisos e bem documentados. O que, por sinal, não são.”

Mas vamos a um trecho do resumo do estudo de Dobbie e Fryer citado por Samuel:

“As escolas charters foram desenvolvidas, em parte, para servir como um mecanismo de P & D para as escolas públicas tradicionais, resultando em uma grande variedade de estratégias de ensino e resultados. Neste trabalho, coletamos dados sem paralelo sobre o funcionamento interno de 39 escolas charters e correlacionamos esses dados com estimativas confiáveis de eficácia de cada escola. Nós encontramos que as medidas de entrada tradicionalmente recolhidas – tamanho da classe, por despesas com o aluno, a fração de professores sem certificação, e a fração de professores com grau avançado – não estão correlacionados com a eficácia da escola. Em contraste, nós mostramos que um índice de cinco políticas sugeridas por mais de quarenta anos de pesquisa qualitativa – o feedback frequente de professores, o uso de dados para orientar a instrução, alta dosagem de tutoria, aumento do tempo de instrução, e altas expectativas – explica aproximadamente 50 por cento da variação na eficácia da escola.”

O que vemos? Primeiro, não são escolas públicas que foram pesquisadas pelo estudo e sim escolas administradas por concessão privada e que nos Estados Unidos são chamadas de Charters. As escolas charters são conhecidas por segregar estudantes com necessidades especiais e de mais baixo rendimento. A admissão nelas em grande parte se dá por loteria, ou seja, sorteio e as famílias mais pobres sequer se apresentam para concorrer. Segundo, é apenas um estudo feito com 39 escolas da Cidade de Nova York, que sabemos teve a educação assediada pelas ideias dos reformadores sob comando de Bloomberg, seu prefeito por doze anos. Terceiro, a tal sabedoria proposta pelo estudo e alegada por Samuel esvai-se em um mero 50% de explicação do sucesso, somadas as várias estratégias mencionadas, isso supondo que o estudo tenha sido bem feito. E os outros 50% do sucesso são explicados pelo que?

Tomemos a afirmação de Samuel de que “menor número de alunos em sala de aula… não tem impacto sobre o desempenho dos alunos… e [até] reduzem o desempenho dos alunos”. Qualquer professor de carreira sabe que não é assim. Mas, basta querer encontrar evidência empírica que mostre que o tamanho da turma faz diferença e pode-se notar que a questão não é tão simples assim. Veja aqui.:

“Na verdade, a história real é exatamente o oposto. “Tamanho da classe importa”, escreve Schanzenbach, uma professora de economia política e educação da Universidade de Northwestern, em Evanston, Illinois. A “investigação apoia a noção de senso comum de que as crianças aprendem mais e os professores são mais eficazes em turmas menores.” Citando evidências da literatura acadêmica, Schanzenbach explica que “o tamanho das turmas é um determinante importante de uma variedade de resultados dos alunos que vão desde os resultados dos testes até resultados mais amplos da vida. Classes menores são particularmente eficazes em aumentar os níveis de desempenho de baixa renda e crianças de minorias.”

E assim poderíamos prosseguir questionando outras “evidências” apontadas por Samuel.

A tese de que a escola pública pode corrigir a pobreza intergeracional proposta por Samuel é a mesma tese do movimento dos reformadores empresariais americanos conhecido como “no excuses”, ou seja, “sem desculpas”. Para este movimento, a pobreza é apenas uma desculpa que a escola usa para não ensinar. São estas ideias que dominaram os Estados Unidos nos últimos 20 anos e não melhoraram a educação americana.

Se os americanos já sabem como resolver o problema da educação, como pretende demonstrar o relatório de Dobbie e Fryer citado por Samuel, baseado na “similaridade” com pesquisas de Harvard, como explicar os parcos desempenhos da educação americana no PISA e no NAEP?

A proposta de expansão de estrategias pouco documentadas para redes inteiras esquece que não basta identificar estratégias e depois tentar copiá-las por aí, pois em educação é preciso encontrar as formas de recriar (e nao copiar) as estratégias que já sabemos que funcionam em cada ambiente escolar. Cada escola tem um “valor para as variáveis” identificadas nos estudos que afeta a recriação dos resultados. Mais do que saber o que funciona é preciso saber também o que impede o funcionamento de certas soluções em uma determinada escola.

Samuel revela-se um amante das escolas charters, ou seja, de escolas operadas por meio de concessão. Pode-se deduzir daí o que proporia ao seu candidato Aécio Neves, onde participa como um dos articuladores do programa de governo. É preciso que se saiba que as escolas charters americanas quando avaliadas exaustivamente pelo CREDO mostram-se de eficácia aleatória: tem as que funcionam bem, as que funcionam mal e as nem uma coisa e nem outra. Veja aqui e aqui. E note-se que elas podem até escolher alunos, o que não é possível no ensino público de fato.

O relatório de Dobbie e Fryer desancado por Bruce Baker e alardeado por Samuel como a salvação da educação brasileira termina assim:

“Ainda que existam ressalvas importantes para a conclusão de que essas cinco políticas podem explicar significativamente a variação na eficácia da escola, os nossos resultados sugerem um modelo de educação que pode ter aplicação geral. A chave do próximo passo é injetar essas estratégias em escolas públicas tradicionais e avaliar se elas têm um efeito causal sobre o desempenho do aluno. Fryer (2011) relata sobre um experimento em andamento de implementação de práticas semelhantes em escolas públicas tradicionais de baixo desempenho em Houston. Esta intervenção parece ter levado a ganhos substanciais de desempenho, sugerindo que estas cinco estratégias podem ser eficazes em termos mais gerais.”

Ou seja, nem os próprios autores estão seguros da possibilidade de que possam transferir seus achados para as escolas públicas. Mas, Samuel já pontificou que esta é a melhor opção para o Brasil. Eis porque prefiro que Samuel fale sobre economia. Ele e eu economizamos nosso tempo e o dos outros.

Tenha dó do meu domingo!!

Sobre Luiz Carlos de Freitas

Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - (SP) Brasil.
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11 respostas para De novo, Samuel?!

  1. Andre Luis disse:

    Achei as suas observações muito pertinentes, mas tenho algumas dúvidas. Criticar as iniciativas dos ditos reformadores empresariais é um ponto de vista válido, mas limitado, pois não há nada de errado em se ganhar dinheiro pelo seu trabalho, promover empregos e também apoiar o desenvolvimento do país através da melhoria na qualidade da educação.

    Vejo muitos acadêmicos e estudiosos da educação criticarem estudos como esses da Fundação Lemann, que podem estar longe de serem receitas de bolo para a melhoria da educação, mas quais seriam os estudos produzidos pela academia que poderiam ser então efetivamente considerados como bases para se tentar melhorar a qualidade do ensino nas escolas públicas brasileiras?

  2. Este é o problema, a educação não se resolve nem com receitas de bolo das fundações e nem da academia. Ela se resolve apostando nos profissionais que estão na escola. Apoiando-os e fortalecendo-os. É assim que em alguns países se faz.

    • DOUGLAS NASCIMENTO DOS SANTOS disse:

      E esse apoio se dá em salários altos, que dignifiquem a profissão de professor. Pois ninguém trabalha por amor (ainda ouço muito isso de Gestores), quando chega o final do mês e não tenho dinheiro para pagar e vou ao caixa do banco, não irá adiantar eu dizer que quero pagar com amor. Temos que ser vistos como profissionais.

      • Andre Luis disse:

        Douglas, acredito que todo profissional e profissão precisa ser valorizado. Os professores não são valorizados pela sociedade e não recebem salários dignos na maior parte dos casos. Precisam de salários justos, dignos. E justamente pela importância , pelo impacto do seu trabalho, precisa ter mecanismos de acompanhamento justos, severos. Se um médico provoca uma lesão em seu paciente, fatal ou não, ele responderá justamente por este equivoco.
        Como lidar com professores (mas serve para outras categorias) que podem destruir ou prejudicar a vida de centenas, milhares de crianças que são vitimas de seus erros?!
        É de suma importância valorizar os professores!!! Mas devemos criar mecanismos de acompanhamento para desenvolver os professores e que combatam práticas e comportamentos que prejudiquem as nossas crisnças. Nenhum profissional / servidor público deveria ter garantia de emprego a despeito da qualidade do serviço que entrega. Permitir isso é ir contra a constituição.

    • Andre Luis disse:

      Prof, também não acredito em receitas de bolo para a melhoria da qualidade da educação. Baseado em seus estudos e pesquisas, quais seriam as principais práticas que poderiam ser utilizadas pelas escolas para melhorar a educação e como isso poderia ser implementado em larga escala?

  3. rmdelatorre disse:

    No artigo do Samuel Pessoa está escrito: “O estudo identificou quatro práticas comuns às escolas que funcionam: definir metas e ter claro o que se quer alcançar; acompanhar de perto, e continuamente, o aprendizado dos alunos; usar dados sobre o aprendizado para embasar ações pedagógicas; e fazer da escola um ambiente agradável e propício ao aprendizado.”

    Qual das quatro você acha que não faz sentido? Ou as quatro?

    Ou nenhuma das práticas faz sentido porque 1) foram defendida por um economista (ao invés de por um pedagogo); 2) foram apresentadas em uma fundação privada; 3) a fundação privada que coordenou o estudo é financiada por pessoas que tiveram sucesso no setor privado; 4) faltam referências bibliográficas no relatório que você encontrou da fundação; 5) o relatório com referências bibliográficas que você encontrou não é conclusivo o suficiente?

    Nesse caso, seria bacana para o leitor do blog você mostrar um estudo definitivamente conclusivo, com referências bibliográficas impecáveis, financiada apenas com dinheiro público (ou sem financiamento), apresentado pelo governo por pedagogos, mostrando 4 práticas comuns às escolas que funcionam.

    Mas se as 4 práticas comuns que você apresentar se resumirem a (como diz um comentário aí em cima) “salários altos, que dignifiquem a profissão de professor, pois ninguém trabalha por amor”, acho que os leitores desconfiarão que se trata de mais um estudo de “advocacia”, apenas originado de um grupo de interesse distinto.

    • sortidosPaulo disse:

      No seu post você, por descuido, coloca resume os argumentos do professor em 5 pontos. No entanto, a argumentação não foi nesse sentido. Leia de novo o artigo, procure saber o que são escolas charters e porque não é possível compará-las mesmo nos EUA com outras escolas públicas, conheça o trabalho de Diane Ravitch, que antes apoiava o No Child Left Behind, e veja algumas pesquisas que desconstroem a ideia defendida no artigo do economista.

    • Luiz Carlos de Freitas disse:

      Prezado De La Torre. Este é um blog de advocacia. Está escrito na página inicial. Nós não ocultamos isso. O pior é quando certas fundações ocultam sua face de advocacia. Fazemos aqui a advocacia por outras ideias que são ocultadas pelas advocacias dos reformadores empresariais que se apresentam como não sendo de advocacia, se apresentam como sendo “científicas”.

      • Rafael disse:

        Obrigado por deixar claro. Como leigo e curioso no tema, sempre me intriga quais seriam os interesses de grupos de “advocacia”, como o seu.

        Com um grupo de “advocacia” como a Fundação Lemann (ou talvez outras lideradas por “reformadores empresariais”), acho plausível que sejam grupos de pessoas que, tendo sido bem sucedidos (e feito fortuna) no ramo empresarial no Brasil e, com isso, se deparando com a falta de preparo do profissional brasileiro médio, queira retribuir de alguma forma à sociedade e contribuir para a evolução do país. Não precisariam se envolver com educação se não quisessem.

        Com um grupo de “advocacia como o seu, não sei o que seria plausível.

        No mais, acho estranho o uso da palavra “advocacia” com o significado que você dá. Parece anglicismo.

        Um grande abraço.

      • Pois é. Não são só os que fazem fortuna que têm interesse na educação brasileira.
        Os profissionais da educação, que nunca fazem fortuna, têm interesse porque são profissionais.
        Só isso.

  4. Alesandra Souza disse:

    “Somos muito ingênuos mesmo”… deve ser isso que o iluminado Lemann deve pensar a nosso respeito. Confesso que nossas formações têm nos alienado cada vez mais…mas daí a tentar nos enfiar de goela abaixo que um modelo “injetado” em nossas veias, ups, quero dizer nas escolas resolveria os problemas educacionais é demais não é? …. mas estou ocorrendo um risco aqui, afinal, o “pesquisador” de tais conclusões se utilizou de “critérios centificos” inquestionáveis. Há, há, há. Será que nesse modelo não vem incluso uns robozinhos para aplicá -lo com mais cientificidade não? Pensa quantos “transtornos” os idealistas do modelo não evitariam.

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