O ministro da Economia, Paulo Guedes, teve um ataque de sinceridade e invocou uma eventual recriação do Ato Institucional No. 5 da ditadura militar para, como ele gosta de pensar, garantir a “ordem” necessária ao “progresso”.
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O ministro é dado a ter ataques, usualmente de ira, mas este foi de sinceridade. A lógica é coerente com o que pensam os neoliberais: se nada (note bem: “se”) nada perturbar o mercado (nem o Estado, nem os esquerdistas, nem os sindicatos) e ele for deixado à sua “ação natural”, ao sabor da “práxis dos indivíduos” produtores (Mises), o mercado “perfeito” emergirá; os desequilíbrios, percebidos pelo empresariado (todos nós, afinal, agora, somos todos empresários de si mesmos) serão convertidos em novas oportunidades de lucro e o progresso emergirá, fazendo com que todos possam compartilhar o “bolo” – lembram da tese do compartilhamento do crescimento do bolo na ditadura militar? – cada um recebendo proporcionalmente à contribuição dada. A sociedade reassumirá, assim, sua evolução “natural” onde o mérito é a referência para o acesso aos direitos. A questão central, portanto, é não perturbar o mercado.
Dessa maneira, entende-se que Guedes tenha sido “apenasmente” sincero: é fé no mercado e não na democracia. Na sua visão, não é a democracia que promove a inclusão e o progresso, é o mercado. Como dizia Hayek, defendendo Thatcher: o que importa é o mercado e não a urna (Selwin, 2015).
Segundo Guedes, também, o seu governo ganhou uma eleição democraticamente. No seu conceito de “democracia”, quem discorda deve fazê-lo de maneira a não prejudicar a dinâmica natural do mercado.
Mourão já havia dito que o capitalismo é uma característica fundamental do seu entendimento do que seja uma “democracia”.
“(A democracia é) Fundamental, são pilares da civilização ocidental. Vou repetir para você: pacto de gerações, democracia, capitalismo e sociedade civil forte. Sem isso, a civilização ocidental não existe”, declarou o vice aos jornalistas.”
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Logo, qualquer tentativa de protestar contra o capital é anti-democrática. Para eles, a democracia supõe o capitalismo, o livre mercado, o que, na prática, significa o inverso: o capitalismo tornou-se incompatível com a verdadeira democracia, cujo conceito, agora, deve ter como fundamento o livre mercado, sendo este, portanto, inquestionável. De fato, uma ameaça ao funcionamento dos mercados legitima que seus defensores possam intervir em nome da “democracia” de livre mercado.
O conceito de democracia de Guedes também é curioso: quando a oposição perde uma eleição e discorda das propostas do governo eleito, ela não deve protestar. É como se ao perder a eleição, perdesse também o direito de ser oposição. Nada a ver com os movimentos contestatórios de quando o PT estava no governo, ocasião em que a direita ocupou as ruas para impulsionar um golpe. Mas, como eram movimentos a favor do livre mercado, foram considerados democráticos.
Em sua fala aos empresários nos Estados Unidos, Guedes foi apenas traído pela sinceridade. Quando percebeu o tamanho da encrenca tratou de consertar. Mas para quem leu Hayek e Mises é fácil detectar sua sinceridade.
Mises esbravejava em Viena, na Comissão Internacional do Comércio, no início do século passado, contra a passividade do governo face às manifestações dos trabalhadores que contestavam nas ruas (Slobodian, 2018). Hayek visitou três vezes o Chile durante a ditadura militar de Pinochet a quem admirava. Como já comentei em outro post (veja aqui) para ele era possível um ditador atuar como um liberal. Vem daí, a ideia de uma “ditadura de transição” para garantir o livre mercado – base da liberdade pessoal e social para ele.
Esta é a maior dificuldade com as políticas neoliberais em países periféricos: são, além de destrutivas, golpistas. Apesar desse autoritarismo, se ficarmos aguardando para contestar, pouco restará para salvar no Estado brasileiro. Lula pegou o ponto certo: o problema central é o neoliberalismo e a critica é inegociável.
Mas será igualmente necessário enfrentar o “neoliberalismo de esquerda” ou “progressista” que está sendo gestado na centro-direita brasileira à sombra do PSDB. Todas as versões levam ao mesmo lugar.
Conservadores, neoliberais e militares, apesar das diferenças, têm um porto seguro onde se encontram: o autoritarismo. Portanto, não há nada de novo na fala de Guedes: ele expressa o que pensam os fundadores do neoliberalismo (ou liberalismo radical) e não é bom achar que foi apenas um lapso do ministro – dada a história recente do período 2014-2018.